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Roteiro de turista. Por Angela Barros Leal

Fizemos Portugal, Espanha, França, e vamos fazer agora Itália, Alemanha e Suíça – escuto a voz feminina enunciar próximo de onde me encontro sentada. Ela não se dirige a mim, e sim à agente de viagem, do outro lado da mesa, mas não posso deixar de antenar os ouvidos e erguer os olhos do celular, para ver de perto quem será a divindade responsável por tão portentosas obras.

Então, descubro agora, sentada à cadeira de um escritório de coworking, enquanto aguardo minha vez de ser atendida, encontro-me ao lado da mulher que pariu significativa parcela do mundo antigo. Aquela que fez nações de notáveis dimensões, que ergueu dos alicerces reinos, cidades, países, que fez surgirem impérios da terra europeia, não pode ser, em nada, inferior a um deus – no caso, a uma deusa.

O uso do verbo fazer em tal condição não deve ser incorreto. Fazemos as malas, fazemos viagens. Mas a forma como a pessoa o utiliza, naquele momento em que a escuto, transfere imponência ao que, ao meu ver, seriam meras viagens turísticas. Ela não foi aos lugares citados, como nós vamos, ou iremos. Ela os fez. Deu origem a eles, como dará aos pontos seguintes de seu roteiro, que talvez ainda inexistam fisicamente antes da prometida chegada dela.

Na realidade, a mim não interessa o que ela fez ou deixou de fazer, desde que não interfira com os meus planos de visitar duas ou três cidades que desejo conhecer antes de morrer. Não pretendo fazer cidade alguma. Elas estão feitas e acabadas, graças a Deus, e minha pretensão não vai além de passeios abertamente turísticos, pois outro adjetivo que não me cabe é o de viajante, usado agora pela mulher que está sendo atendida.

Tenho horror a essa história de turismo – ela afirma, enfática. Eu e meu companheiro somos viajantes! – garante em itálico, negrito e caixa alta.

Que coisa, penso eu, admirada pela postura firme da moça em relação ao que seria um transitório status viandante. E me confesso meio perdida, tentando dissecar a diferença entre os termos turista e viajante.

Ambos deixam suas casas para conhecer outros lugares. Ambos se colocam diante de monumentos, praças, estátuas, prédios públicos, para admirar sua fama, beleza ou perenidade. Ambos interagem com pessoas e costumes, idiomas e moedas diferentes das que estão habituados. Ambos documentam as visitas com o clic discreto de seus celulares.

Ou não.

A favor dos viajantes, pode ser que seu grande diferencial esteja no privilégio das longas jornadas, nas permanências demoradas nos lugares visitados, na capacidade de dispor de tempo e recursos suficientes para vivenciar, por meses ou anos, o que os turistas avistam de passagem, da janela de seus ônibus.

Talvez o viajante não aja dessa forma, e se porte qual fosse um dos nativos, indiferente aos encantos de paisagens e cenários, evitando as programações traçadas para a massa, entediado com tudo que se relacione ao usufruto fácil do que lhe seja oferecido.

O viajante deve distanciar-se, como o diabo se distancia da cruz, dos locais de venda de lembrancinhas, das pequenas recordações turísticas destinadas a cobrirem-se de poeira nas prateleiras domésticas. Deve arrepiar-se ao ultrapassar grupos multinacionais, liderados por guias de bandeirola colorida, ou guarda-chuva erguido no ar. Deve desviar os olhos quando atravessa a rua diante dos ônibus duplex, lotados de tu-ris-tas.

Nada disso deve constar no roteiro que a moça discute agora com a atendente da agência de viagem. Entre em prontidão o que virá a ser a Alemanha, a ser feita por ela, que em breve chegará. Que teça um tapete vermelho o país que se chamará Itália, enquanto não desembarca aquela que lhe dará origem. Acerte os relógios o que será a Suíça, para receber, em todo o poderio criativo, essa mulher cuja aparência regular oculta o peso do próprio arbítrio.

Irá fazer os três países como fez os três anteriores, sem o registro de fotos, sem o movimento dos vídeos, sem espanto nem admiração, pois de tudo a viajante já sabe e já fez, imersa em seu mito fundador.

Está chegando minha vez de ser atendida. Sei que não levarei mais do que um minuto para confessar à agente, em voz baixa, que não quero fazer nada de excepcional, além de passear, ver, visitar, revelando em voz baixa que não passo, sim, de uma mera e encabulada turista.

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