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James Baldwin, literatura e consciência; Por Augusto Lessa

Baldwin cercado por admiradores após o comício no sul de Manhattan, em 22 de setembro de 1963. Imagem: Bob Adelman

Por Augusto Lessa*
Post convidado

Em 1957, Dorothy Counts tentou estudar na Harding High School, em Charlotte, na Carolina do Norte. Dorothy tinha 15 anos e, ao lado de mais três colegas, foi exposta às maiores atrocidades pelos jovens estudantes, seus possíveis colegas. Em quatro dias, os membros da administração escolar não fizeram nada. Os conselhos civis de proteção fingiram que nada estava acontecendo. E, sem a menor proteção ou segurança, foram humilhados. Ninguém tentou conter as provocações e os ultrajes.

Algumas garotas brancas ainda se aproximaram de Dorothy e mais três de seus amigos negros, mas para escarrarem em seus pratos de almoço. Dorothy Counts era a primeira garota negra a tentar estudar numa escola que havia sido segregacionista. Desde 1954, quando extinguiu as escolas que considerassem isso exigências frequanciais e pedagógicas, a Suprema Corte norte-americana assugurou o direito de livre frequência a todos os alunos, independentemnte de cor de pele, em qualquer escola do país.

Nesse mesmo período, na França, o escritor norte-americano James Baldwin havia lançado um livro incômodo, Giovanni’s Room. Baldwin era negro e ousara escrever um romance com todos os personagens brancos, com um tema gay e uma maioria bizarra de caracteres caóticos numa Paris de pós-guerra. Ele conhecia os casos dos horrores contra os negros de sua terra, mas discutia tudo de uma distância confortável, insensível à realidade da terra de onde viera e que o odiava de modo tão massacrante. Na Europa, ele não sentia nada que o atraísse ou o ligasse aos Estados Unidos, a não ser num nível onírico, em conversas com expoentes mundiais dos movimentos negros.

Na coleção de informações e vivências pessoais de James Baldwin, Dorothy Counts era era apenas mais uma das vítimas de esmagamento dos direitos civis dos negros, ela mudaria o conforto intelecrual e a paz emocional de James Baldwin. Ele voltaria aos Estados Unidos e, apurando racionalmente, e com mais paixão, casos como o de Dorothy, entendeu que o moedor de carne e alma estava em pleno funcionamento. Baldwin desistiu das ilusões de adptar um processo civilizatório no qual estivesse inclusa, claramente, a igualdade entre brancos e negros nos Estados Unidos. Ao lado de Malcom X, Luther King, Bayard Rustin, Amelia Boynton, enfrentou a brutalidade de ser negro nessa América socialmente asséptica.

Algo se partiu dentro de Baldwin entre o final dos 50 e começo dos 60. Uma coisa forte que espalhou veneno de boa qualidade  nas suas veias. A partir da denúncia e revolta contra um preconceito assassino, seus romances deixaram de ser complacentes com brancos. Seus ensaios são panfletos lascerantes rasgando a moral branquelada e socialmente correta. O aparente desejo de uma unidade de cores de pele – quando, pela sua literatura, brancos e negros se entenderiam bem – se rompe de vez.

Baldwin quebra os espelhos integracionistas e se mira noutro espelho em que se vê cruamente negro, gay, desprotegido, violentado e violento até a última gota de saliva, até o último pingo de suor. Baldwin é, agora, a fera. É ele quem diz “da próxima vez, o fogo!”. James Baldwin não iria mais pagar o preço de ser branco para ser recebido no mundo: ele entraria à força na goela do mundo.

Nas informações internas sobre o livro, e na sua apresentação no site da Companhia das Letras, o redator escreve que “esse James Baldwin, aos 31 anos, se dá conta do momento mais importante de sua formação, quando se viu obrigado a perceber que a linha do seu passado não levava à Europa, e sim à África”. Aí ele se choca ao perceber que todos os elementos do cânone ocidental, de Shakespeare a Bach, não eram criações que lhe pertenciam. Baldwin toma a palavra, agora já no próprio livro, afirmando convicto: “realmente não eram minhas, não abrigavam minha história; seria inútil procurar nelas algum reflexo de mim. Eu era um intruso; aquele legado não era meu”.

James Baldwin amplia-se como pessoa e como artista. Produz uma sequência de danações literárias que o consagram como um lutador de golpes bem aplicados, não como vítima desguarnecida. James Baldwin insulta, antes que o oponente tenha condição de um mínimo elogio; humilha, antes de o adversário abrir a boca; leva-o à lona, antes que o outro se levante do banquinho de beira de ringue. Seus livros Just Above My Head, The Devil Finds Work, If Beale Street Could Talk, Going to Meet the Man, Blues for Mister Charlie – poucos deles traduzidos no Brasil – mutilam verbalmente os brancos que patrocinam a corrosão da condição humana.

Não é verdade que se tenha deixado levar pelas alas moderadas e radicais para servir de meio termo na locução dos direitos civis dos negros. Impossível pensar em Baldwin como um narcisista nutrindo o ego à custa de uma promoção midiática fuleira. É necessário ser um babaca novinho para pensar assim – naquela época, Baldwin chamaria “babaca novinho” de toupeira.

James Baldwin (à direita) em um serviço memorial na cidade de Nova York para quatro meninas negras mortas em um atentado a bomba em uma igreja em Birmingham, Alabama, em 1963.

A obra de Baldwin passa a um ativismo social conscientemente virulento. Ele afia a navalha da sua capacidade narrativa numa pedra de amolar facão e se aparta de uma certa candura presente em livros como Giovanni e Another Country. E há algo mais duro na visão de Baldwin quanto à segregação racial, talvez resquicio do pensamento de Malcom X, ele não bajula mais gente branca, ele não crê que haja uma solução para o descaso, ele simplesmente não crê. E ele não pede, ele exige que o refinamento do seu ódio não seja confundido com alguma espécie de condescendência.

Sua obra está aí como um chute violento nas partes pudendas, no saco escrotal de uma Ku Klux Klan que nunca se extinguiu no mundo, nem na África, onde negros matam negros alegando algum tipo de superioridade – vide Ruanda, 1994.

Com todo o terror, o ódio e a violência explicitados, James Baldwin, no entanto, nos deixa um último aceno de bandeira branca sob forma de palavras – não sei até que ponto cínicas ou sinceras – ele diz: “brancos e negros têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica comunicação”.

Augusto Lessa
Faço uma observação a quem interessar: vários livros de James Baldwin estão sendo editados pela Companhia das Letras. O documentário “Eu não sou o seu negro”, vital para o conhecimento do pensamento de Baldwin, está disponível em diversas plataformas de streaming.

Paraibano de nascimento. Nasci em 2 de março de 1951. Estudei Direito e ciências humanas nos anos 70. Estudei outras coisas que terminou numa fixação em comunicação – rádio, jornal e TV, fontes de onde tirei – honestamente – o pagamento dos meus boletos. Inscreveram-me sem que soubesse (longa história) e ganhei um concurso literário em 2004 (ou 2003), aqui, em Fortaleza, com O Acompanhante do Outono, novelinha que também foi publicada em Uppsala, Suécia. Não lembro em que concurso de literatura cearense isso se passou, nem quem o promoveu, mas ganhei. Escrevo porque é a única forma de vida que reconheço como real. Escrevo mas não publico. Hoje, trabalho na coordenação de parte do setor de comunicaçção da Casa de Vovó Dedé, outra realidade da qual não abro mão. É só.

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