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Do Outeiro à Aldeota; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Urbanização e poder na cidade de Fortaleza
Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

“Fortaleza de 1930… Cidadezinha
bucólica, Burgo modesto, com ligeiras tintas
dominicais, Aqui e ali,mas, no fundo,
Ingênua e simples como as crianças”
Otacílio Colares, “Fortaleza em desamor”

Vista Aérea do Colégio Militar de Fortaleza. Imagem feita pela Escola de Aviação Militar em 28-03-1934. Localizado no início da Santos Dumont (Av. Santos Dumont, 485) a área marca o início da expansão de Fortaleza para o bairro que hoje forma a Aldeota e outros.

Da Bíblia vem uma primeira referência – “outeiro de Deus”, local de adoração ou sacrifício, lugar de meditação e encontros espirituais”. Do latim, altarium, altar; na geografia, monte, cabeço, colinas, cômoros e morros, pequena eminência de terra firme; mas também festividade ou comemoração que ocorre no pátio de um convento.

Nesta Aldeota de Sânzio de Azevedo, provavelmente um dos mais amplos e completos acervos dos registros citados aqui sobre o bairro, burgo saliente e dotado do espírito burguês que lhe deu notoriedade, encontrei mais do que um roteiro, mas, sim, a carta de descoberta, o livro de anotações sobre as suas origens e a marcha para o leste que só as dunas da praia do Futuro poria limites.

Foi lá que encontrei o verbete, disseminado pelos dicionários e textos de geografia: “povoado ou aldeia […] como exemplo, lembro aldeia, aldeota, povoado, arraial…” [Sanzio de Azevedo, Aldeota, Fortaleza, Secultfor, 2015]. João Brígido, citado por Sanzio de Azevedo, recorda que “a edificação que se seguiu imediatamente depois do quartel, residência do comandante do presídio, foi a de Aldeota, povoação de índios, no sítio conhecido por este nome, nas imediações do Pajeú [João Brígido – Ceará, homens e fatos, Rio de Janeiro, Tipografia Bernard Frères,1919].

Supõe-se com algumas restrições de prudência que, conforme lembrança de Mozart Soriano Aderaldo, “o cearense passou a manifestar seus primeiros vagidos no campo da literatura e da cultura em geral somente com os chamados “Oiteiros” que o governador Inácio de Sampaio, pelos idos de 1613 e anos seguintes patrocinou, em sua própria residência e sede do Governo, depois chamado de Palácio da Luz, no qual se manteve a administração cearense até a década de 1970.”

O grupo literário Os Outeiros

Recorde-se que a palavra Outeiro tem registro nos dicionários, de épocas recuadas, lugar de meditação e encontros espirituais. A designação ajusta-se ao clima das reuniões intelectuais e literárias – os “oiteiros cearenses” ainda hoje referidos. [História Literária do Ceará: dos Oiteiros ao Grupo Clã, Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1942]. Integraram os Oiteiros, José Pacheco Espinosa, Castro e Silva, Costa Barros, Manuel Correia Leal e padre Lino Gonçalves de Oliveira, autonomeados “Os Oiteiros”.

Na fixação da toponímia prevaleceu para dar nome ao lugar, o povoamento de índios, ás margens do Pajeú, nas imediações da avenida Dom Manuel no seu leito em direção do poço das Dragas – aldeia, aldeota, aldeia pequena.

Oiteiros e aldeia, deu Aldeota
Acreditava-se, quando dos lances iniciais da geografia urbana e das explicações trazidas pela sociologia que o crescimento de uma cidade seguia a atração do sol, ali onde amanhecia mais cedo.

A explosão urbana com o alastramento descontrolado dos núcleos populacionais, como alguns urbanistas costumam dizer, parece ter desmentido esta ideia romântica. Fortaleza cresceu em todos os sentidos, em ritmos alternados, leste, oeste sul… Ao norte, abriam-se os vastos caminhos dos mares.

Em uma série que venho publicando no Focus, pude apontar como se criaram os bairros de Fortaleza, desde o centro, downtown, na direção da Barra do Ceará, a praia de Iracema, Jacarecanga, o Alagadiço e as suas vizinhanças próximas, o Benfica, as Damas e a Aldeota. Em uma segunda ocupação de áreas periféricas os bairros e comunidade que se foram constituindo, segundo circunstâncias sociais e econômicas relevantes e poderosas com as naturais decorrências deste perverso processo de ocupação territorial e acomodação humana, formaram o colar de pedras de uma perversa urbanização.

A aldeiotização da Aldeota, segundo Romeu Duarte Jr.
O segundo momento de expansão alcançou áreas circunvizinhas à Aldeota com novos bairros e conjuntos populares, a fixação de zonas comerciais e a corrida para o sul, como se fora a conquista de terras novas e de novas oportunidades, na grande área periférica de municípios da grande área de influência de Fortaleza.

Não é deste boom que vamos no ocupar aqui. Porém do perfil, social, econômico e político do qual hoje a Aldeota desfruta.

Capa livro de Romeu Duarte

“Fortaleza se divide em duas cidades, uma “leste-rica” e uma “oeste-pobre”, apresentando como subprodutos deste processo a aldeotização´, a valorização exacerbada da terra urbana, a criação de condomínios fechados e a pressão por habitação popular, num claro exemplo de urbanização destituída de sustentabilidade e igualdade”, Romeu Duarte Jr. – “Emilio Hinko, arquiteto, o último eclético. Arquitetura e Poder em Fortaleza”, Fortaleza, 2021, Gráfica LCR, p. 80.

São numerosas as abordagens sobre a Aldeota como projeção burguesa da progressiva apropriação das terras do vasto Outeiro. Há quem tenha refletido com apoio em exercícios de uma etnização concebida com a intenção para a construção, ali, de um gueto de famílias endinheiradas. Embora parecesse notória a forma pela qual o seu patrimônio tivesse sido construído graças a fontes e expedientes suspeitos de capitalização.

Nas cidades que ampliaram a mancha urbana da sua apropriação territorial, como ocorreu com os principais bairros de Fortaleza, conforme venho tratando nestas notas avulsas, o deslocamento pelos seus “colonizadores” ocorreu nos rastros de uma fuga das aglomerações periféricas, em busca de melhores e mais amplos espaços, à distância de arruamentos populares que desmereciam e desvalorizavam os imóveis neles situados.

Residência cuja arquitetura é exemplar da nova e rica ocupação urbana de Fortaleza a aprtir dos anos 50.

O processo do qual nasceram os bairros “nobres” da cidade desenvolve-se, progressivamente, a partir do século XIX. A ocupação de terras novas no entorno da cidade, sobretudo em terrenos elevados de frente para o nascer do sol foi um processo de fuga e de atração. A atração dos largos espaços por ocupar, em área ensombreada e fresca, barreira acolhedora dos ventos que subiam do litoral — muralha distante do cerco de outros grupos sociais–, não foi maior do que o instinto de fuga em busca de abrigo e das extensas áreas entre dunas e arvoredo, onde se instalariam as chácaras e propriedades dos primeiros.

A Aldeota tornou-se predominantemente branca e rica em seus redutos urbanos graças à concentração da riqueza que ali cresceu pelas artes da mercancia, com a valorização imobiliária do solo. Não que houvesse ainda, despertado, como admitem os cientistas políticos, um certo espírito de classes. Ricos e pobres, senhores e assalariados não haviam descoberto, por esse tempo de rala precipitação dialética – onde encontrar as teorias marxistas que dividiam a sociedade em fatias heterodoxas de classes.

A ideia de um bairro de novos ricos faria da Aldeota a “Aldeota”, aldeiotizada, cuja definição encontrei em um texto provocante e bem construído de Romeu Duarte Jr., já citado. Para Geísa Mattos [“O luxo da Aldeia: a produção social de lugares da branquitude de Fortaleza”, Revista Espaço Acadêmico, Ano XXI, Abril de 2022], aldeotização significaria “a expansão de certos modos de apropriação do território pelas elites”.

Impossível negar a natureza da ocupação das terras de outeiro da Aldeota; o mesmo ocorrera por onde a força do crescimento populacional empurrara os mais ricos para os lugares eleitos para a sua localização em paraísos condominiais. E os mais pobres para a lixeira das favelas e dos bairros da periferia que cresceram rapidamente no entorno ampliado da cidade em desordenado crescimento.

Nem só de comerciantes e negociantes bem sucedidos (por aquele tempo desconhecia-se o que eram “empresários”, como categoria social e econômica) faziam-se os homens ricos. Os profissionais, os médicos e advogados, completavam essa elite de profissionais bem-remunerados; ao lado da clientela seleta de pacientes bons pagadores, os empregos públicos supriam os ajustes da receita familiar. As oligarquias exerceram no Ceará, exercem sempre, até hoje, sob roupagens modernas, papel econômico, social e político de provedoras de oportunidades para os da sua grei nas intimidades do poder do estado.

O cearense é, por natureza, mercador
Segundo um antropólogo – Luiz Fernando Raposo Fontenelle – que esteve no Ceará por longos anos de pesquisa no departamento de ciências Sociais da UFC, a riqueza no Ceará construía-se pela mercancia. Mas não necessariamente com a exclusiva contribuição dos negócios.

Apontava os recursos públicos, provenientes de todas as instâncias, como item constante da receita privada, por serviços prestados ao poder público. Ademais toda atividade útil remunerada terminava por ser irrigada por dotações federais, estaduais ou municipais. Todos, entre estas criaturas

empreendedoras, terminavam por tornarem-se comerciantes e empresários no rótulo que hoje os nomeia. [Luiz Fernando Raposo Fontenelle – “Um Mundo dominado”, Fortaleza, PROED, UFC, 1979 LFRF – “Rotina e Fome em uma região cearense”, Fortaleza, Edições UFC, 1969]

Capa de uma das edições de Aldeota, de Jader de Carvalho.

A crítica social de Jáder de Carvalho em uma tríade na qual se reúne o melhor da sua prosa – Dr. Geraldo (1937), Sua Majestade, o Juiz (1962) e Aldeota (1963) – e de melhor arguição analítica, demonstra esta amarga realidade, conquanto o faça de forma restritiva como o faria, por aqueles tempos, um respeitável e combativo comunista cuja fluência marcaria o jornalismo cearense.

Não surpreende que tenha sido assim, um dia. Estado pobre, dominado pelas oligarquias que exerciam todo o poder de mando e autoridade, o Ceará não produzia o suficiente para compor a sua receita, muito menos a sua “despesa”.

Livro o Outro Nordeste, de Djacir Menezes.

Por aqui, nos contornos da nossa fundação como povo e território, pobres eram todos, os fazendeiros e os rendeiros. Os donos e os que viviam da “terça”. Fomos, por toda a vida, o nordeste magro e seco, o Outro Nordeste de Djacir Menezes, tão diferente do Nordeste gordo e úmido, de Gilberto Freyre…

Tivemo-los e os temos agora, os nossos ricos, gente moderna, empreendedora e bem educada, postos na mira de uma ação “regeneradora” de novos governos populares. Assistimos por estes tempos rarefeitos, diante de nossos olhos compassivos a terapia ortodoxa de velhos modelos da destruição dos ricos, sem tratarmos das desigualdades, em nome da pobreza.

A Aldeota, como já se pôde perceber, a exemplo dos outros bairros, “nobres” desta formosa cidade de Fortaleza é uma projeção urbanística das pressões da periferia empobrecida que a cerca. O Pajeú mostra-se como divisória entre o Centro da cidade antiga e o novo casario que começa a mostrar-se a partir da rua coronel Ferraz, na junção com a avenida Santos Dumont, no que veio a chamar-se praça Figueira de Melo.

Belo conjunto arquitetônico formado pela Igreja do Pequeno Grande e o Colégio da Imaculada Conceição (Fortaleza, CE. Fonte: IBGE). 

A igreja do Pequeno Grande, o Colégio da Imaculada Conceição e a Escola Normal Justiniano de Serpa constituem referência de destaque do logradouro, de onde parte a avenida Santos Dumont, em linha reta até às dunas da praia do Futuro.

Em uma dessas moradas familiares conjugadas, morou por muitos anos a família Vasconcelos Dias. D. Iracema, em seus longos anos de viuvez, Miron, Wilson, Batista, Milton, e a “Irmãzinha” de quem guardei o apelido gentil e cordial que os irmãos lhe deram.

Da Aldeota, nesta prestação de contas que não consigo esgotar, trago para estes registros o corte intemporal, sem data marcada, com a narrativa seguindo por entre lembranças e esquecimentos. Nada que aprisione o leitor ao rigor da narrativa história. De verdade, exercito, aqui, uma forma particular de topografia por entre a história, a memória e o esquecimento, à moda de Paul Ricoeur nos seus escritos sobre “a condição histórica dos seres humanos que somos”. [Paul Ricoeur – “A memória, a história, o esquecimento”, São Paulo, 2024, Editora UNICAMP].

Os sábados de Milton Dias e Claudio Martins

Milton Dias, o cronista da Cidade Dumont

A “casa do Mílton”, era o lugar de recolhimento, se assim poderia chamar-se a agitação intelectual que ali se repetia aos sábados e em momentos especiais. O “sábado-Milton” perdurou pelo tempo que durou a sua vida. No sábado anterior à sua partida, lá estavam os de sempre, fiéis e cumplices. [Juarez Leitão – “Sábado, estação de Viver”, Fortaleza, 2022, Premius Editora].

Em Conversa de Livraria e A Pedra de Sísifo recupero essas sessões intermináveis que tinham início na rua coronel Ferraz e continuidade, sábado a dentro, na rua José Lourenço, onde nos aguardava Cláudio Martins para novas e renovadas porfias literárias.

A Padaria Primavera e as bolachinhas Globo

Fazendo esquina com a avenida Dom Manuel, o Grupo Escolar Clóvis Bevilaqua. Em frente, a padaria Primavera, de Joaquim Antonio Oliveira, fabricante das bolachas “Globo” e “Avenida”. O lugar de uma história bem lembrada. Ouvi certo dia, em conversa de um grupo de amigos, o professor Haroldo Juaçaba lembrar uma estória da sua infância pelas dom Manuel onde morou a família,

Cabia-lhe, por obrigação ou gosto, comprar o pão para o café da merenda da tarde. Atendia-o, com a sisudez habitual, o sr. Raimundo, padeiro, proprietário do negócio. Enquanto embrulhava os pães sovados e d´água, o menino Haroldo, pendurado no balcão, servia-se com discrição das bolachinhas Globo postas nas gavetas à vista da freguesia.

Anos depois, Haroldo, matriculado médico e Juaçaba, atendeu o velho padeiro para uma consulta que o levaria à mesa de cirurgia da Casa de Saúde São Raimundo. Operado e recuperado, volta seu Raimundo para acertar os honorários devidos. Ouve o velho padeiro, sem entender o que lhe chegava aos ouvidos, entre palavras discretas: “O senhor não me deve nada, fica por conta das bolachinhas”…

Colégio Militar Fortaleza, em imagem de 1937.

Praça Clovis Bevilaqua e Praça Eudoro Correia assinalaram uma pracinha e a praça de Esportes, tendo a Paróquia do Cristo Rei e o Colégio Militar no perímetro formado pela rua Nogueira Acioli, Franklin Távora e Dona Leopoldina.

Os estabelecimentos de ensino e formação do Exército em Fortaleza foram, entre 1889 e 1961, cinco, sob diversas denominações: Escola Militar do Ceará (1889), Colégio Militar do Ceará (1919), Colégio Floriano (1940), Escola Preparatória de Fortaleza (1942) e Colégio Militar de Fortaleza (1961). Neste interregno, a partir de 1898 até 1919, funcionaram no mesmo prédio o Colégio N.S de Lourdes, a Força Pública do Estado do Ceará e o 10º. Regimento de Artilharia Montada da Policia Militar.

Na Praça General Eudoro Correia, um antigo cinema poeira resistiria por anos, com habitués e frequentadores do bairro. Por ali moravam Maria Teresa e Gilmário Mourão Teixeira, ela dentista, com seu consultório em moderna edificação. O professor Prisco Bezerra e família, o desembargador Carneiro e o comandante das escolas e colégios do Exército.

Desde Eudoro Correia, o logradouro simbolizou o poder vivo do nosso exército, praça de paradas de tropas e cadetes, centro olímpico e confluência de brasileiros de todo o País, alunos e militares.

Planta de Fortaleza desenhada em 1875 por Adolfo Herbster. Oriundo de Recife, Herbster desembarcou em Fortaleza em 29 de janeiro de 1855 para trabalhar como engenheiro da Província. Fez um levantamento cartográfico da capital cearense e foi responsável pelo arruamento de diversas avenidas, à época denominadas boulevards.

A partir da rua Nogueira Acioli até à avenida desembargador Moreira os novos arruamentos seguiram o toque urbano de traçado por Antonio José da Silva Paulet para a configuração das ruas do Centro, em 1818. Coube a Adolfo Herbster fazer a primeira planta de Fortaleza, em 1875. Da sua mesa de criação saíram os boulevards, ideia das avenidas largas, como o barão Haussmann projetara para Paris, conservando, entretanto, o traçado das ruas em xadrez, de acordo com a concepção de Paulet.

Primórdios da Avenida Santos Dumont. Estrada em terra batida que saia do velho Centro para áreas que então se denominavam “areial”.

A avenida Santos Dumont abria espaço entre as quadras, quarteirões, como o chamamos no Ceará – quartier, parisiense tão bem descritos por Umberto Eco nas suas evocações do Quartier Latin medieval expostas no Cemitério de Praga.

Novas habitações que já fugiam ao padrão dos casarões alpendrados, em meio à verdura dos quintais, eram os bungalows, sobrados em meio a uma gleba sedutora de frente para a avenida. Os novos habitantes fincavam a marca do seu domínio e das novas afeições que já começavam a nascer com a proximidade dos novos moradores, famílias deslocadas de outros bairros, vindas do Jacarecanga, do Benfica ou do Alagadiço que cediam lugar a uma classe média de funcionários e pequenos comerciantes.

A Aldeota ganhava referência, a indiferença e a desconfiança dos moradores dos bairros que compunham a nova periferia agravada pela desigualdade e a pobreza que perduram, ainda hoje, como um dos indicadores de lamentáveis condições de vida dos seus moradores.

Tive amigos e os tenho ainda, moradores fiéis da Aldeota. Com Henrique Barroso, museólogo respeitado, discuto com frequência sobre os rumos desta alongada conversa.

O Palácio do Plácido, a Vila Alsace, antes, Sítio Iracema, de Myrtil Meyer, a Vila Toscana, o Colégio São João e a residência do senador Fausto Cabral, na avenida Barão de Studart, davam o toque europeu-mediterrâneo por entre as novas habitações, dominadas pelos ares de modernidade ao gosto dos contemporâneos, que iam sendo construídas ao final da Aldeota de então, até onde alcançava a linha do bonde da Ceará Transmways, Light and Power Co, que viria chamar-se Companhia Ferro Carril do Ceará.

O Palácio do Plácido esconde atrás dos mármores importados da Itália, a história de uma paixão. Em torno do Palácio e da riqueza construída por Plácido de Carvalho, nasce esse projeto extravagante em uma vila que ensaiava a transformação tímida em cidade, a reprodução de uma arquitetura inspirada nas obras italianas, nos beirais renascentistas de Andrea Palladio.

Palácio do Plácido
Plácido Carvalho
Pierina Rossi

De alguns estudos, dentre o que ficou registrado na crônica histórica ligeira sobre Fortaleza, merecem referência quatro livros publicados recentemente com o melhor da pesquisa e a narrativa sobre Plácido de Carvalho, suas paixões e a fortuna. [Romeu Duarte – “Emílio Hinko, arquiteto – Arquitetura e poder em Fortaleza”, (Ilustrações de Domingos Linheiro), Fortaleza, Gráfica LCR, 2021242 páginas; e Eliézer Rodrigues – “Castelo do Plácido: Apogeu e destruição”, Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2024; “A Avenida Santos Dumont no Contexto da Cidade, Fortaleza, 2019; e Lira Neto & Claudia Albuquerque – “História Urbana e Imobiliária de Fortaleza: biografia sintética de uma Cidade”, Fortaleza, 2014].

A economia cearense viveu nas duas décadas seguintes à I Guerra Mundial [1900/1920] surto de progresso sem precedentes, só comparável à economia do couro, interrompida com a exportação de algodão para o Exterior. A “Civilização do Couro” referida por Capistrano de Abreu cobre período relativamente longo para economias de tão diminuta projeção comercial [de meados do século XIX até depois da II Guerra Mundial]. Fixa, entretanto, com a criação extensiva de gado, o perfil deste nordeste que nos seduz e encanta.

Alguns cronistas românticos associam estes progressos alcançados em terras batidas pela seca e pela pobreza a uma espécie de Belle Époque tardia [Leonardo Igor de Sousa”, A história do castelo italiano construído em Fortaleza como presente de casamento”, Ceará Verdes Mares, 2024]. A prosperidade de Plácido de Castro e as suas viagens frequentes à Europa são, certamente, a marca destes tempos promissores.

Em um certo sentido a Aldeota que conhecemos, hoje, foi conquista realizada pelo bonde, do inglês bond, ligação. O leito de trilhos que começava na Travessa Morada Nova, por trás da Assembleia Legislativa, percorria nos começos da conquista daquelas terras, antes da “ocupação” da Aldeota pela burguesia conquistadora do comércio e das profissões gradas, respeitáveis.

O bonde percorria a estrada de penetração das terras novas pelos desvãos do Oiteiro, a levar passageiros e encomendas; para os passeios dominicais e a alegria da meninada. Os trilhos foram os emissários condutores da civilização. As estradas de ferro cumpriram este papel, interligando cidades na Europa Continental e criando novos centros e vilarejos florescente. A América “americana” foi construída pela locomotiva a vapor. O Brasil teve, para uso e avanços territoriais, esta capilaridade econômica e social, até apagar-se o forno das locomotivas e arrancarem os trilhos, em nome da modernidade.

Fotografia antiga do bonde Outeiro
Bonde Outeiro

O bonde da linha 76 – Aldeota – distinguia-se das outras linhas, desde a parada no Centro, exclusiva e posta ao lado do poder legislativo, a alguns passos do Palácio da Luz e do bulício da praça do Ferreira. Da criação desta linha, entretanto, anos antes, o bonde partia do Colégio da Imaculada, da rua coronel Ferraz, em linha única, com os desvios que interrompiam o seu curso alongado. [Zenilo Almada – “O Bonde e outras recordações”, Fortaleza, 2005, Expressão Gráfica Editora].

 Criança ainda, os meus limites para as terras dos oiteiros eram a avenida Desembargador Moreira, um pouco mais tarde, avenida Estados Unidos, transformada por justiça e merecimento em Avenida Virgílio Távora. Homem feito, testemunharia a multiplicação da Aldeota em muitas e diversas Aldeotas, centro do poder político e sede das grandes corporações, carecidas de espaços públicos e de povo, não fossem os consumidores e os empreendedores de uma nova época de prosperidade cativa. Um burgo pujante de riqueza e alegrias mundanas, cercado pelas favelas invisíveis, ilhada por este lixo de subsistência e sobrevida social que cerca as grandes metrópoles.

A Aldeota transformou-se em um sofisticado acampamento de mercadores bem estabelecidos e pelas antropotecas nas quais se refugiam e guardam-se as pessoas prudentes.

Clube Náutico: um marco na fixacão da nova burguesia, em sua maioria comerciantes e profissionais liberais, que formaram a Aldeota.
Vista área que tem a atual Praça Portugal como referência. Em seus arreedores, uma Aldeota em franca expansão, mas ainda sem os grande edifícios comerciais e residenciais. Imagem do início da cécda de 1970.
Imagem aérea do litoral de Fortaleza em 1937. No centro, a Praia de Iracema com seu velho atracadouro e barcos fundeados. No lado esquerdo, dunas que mais tarde abrigaram a Aldeota.
Escola Justiniano de Serpa em construção no início dos anos 1920. O p´redio é tombado e compõe de valor patrimonial histórico e arquitetônico do qual fazem parte também o Colégio Imaculada Conceição, a Igreja do Pequeno Grande, a Escola Jesus, Maria e José, localizados no entorno da Praça Filgueiras de Melo, no limite entre o Centro e a área que mais tarde virou a Aldeota.

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