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O barbeiro que lia Voltaire. Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Recorte do quadro O Padre e o Barbeiro, com a governanta e sobrinha de Dom Quixote, purgando a biblioteca de Livros de Cavalaria do Don. Obra do gravador e aquarelista inglês John Augustus Atkinson (1775–1830).

[Da tesoura e da navalha aos desafios da hermenêutica e das lides forenses]

Das advocacias do velho Paulo Elpidio, uma entrou para a História.  A ação impetrada pelo Estado do Ceará contra o ex-governador Idelfonso Albano, surpreendido pelo uso inadequado de verbas públicas. Deu-se grande “imbróglio”, transformou-se a denúncia em uma grave questão política, tendo chegado ao ponto no qual a corrupção e o patriotismo são parte inseparável dos cometimentos do Estado.

Enfrentou gente importante nesta formosa praça de Fortaleza e em suas numerosas Varas. Contribuintes relapsos, devedores do fisco, funcionários enrolados com comissões e benefícios generosos… Muitos seriam perdoados e indenizados que a corrupção não é, no Brasil, um ato criminoso, mas um traço cultural ancestral.

A ação mais importante na qual se envolveu, conforme referida antes, como solicitador dos feitos da fazenda, uma espécie de procurador sem as honras desta condição, envolvia o ex-governador Ildefonso Albano, por questões de pecúnia mal auferida com o uso indevido de diárias recebidas em uma longa permanência de mais de um ano em Nova Iorque a tratar de assuntos do interesse do Ceará…

No mais, Paulo Elpidio, maçon que já lhe serviam por aqueles tempos de muita fé arraigada, os olhares enviesados do clero local, advogava para a estiva do Porto, catraieiros e operários. A casa da Laguna, onde manteve residência até o avanço das marés do Mucuripe, vivia cheia daqueles calejados senhores, constituintes do avô. Para essa clientela, advogava “de graça”… Houve quem o tivesse como comunista, o que o fazia rir, com uma certa cumplicidade e indulgência.

Naqueles tempos, ser comunista não era ainda considerado terrorismo urbano ou rural ou “atividade antibrasileira” — não passava de heresia aos olhares conspícuos e vigilantes da fé.

PE era, sim, um homem carecido de fé. Mas não reclamava da sua pobreza, como funcionário do Estado, tampouco como ateu presumido, desvalido das graças da Revelação.

Joaquim Pimenta, jurista e homem de grande cultura, muito jovem, conheceu-o quando ainda usava a tesoura, pente e navalha, em Maranguape. Naquele arruado distante no tempo e no espaço, foi barbeiro, recém-casado, mestre das artes do corte de cabelos… Joaquim Pimenta evoca em “Retalhos do Passado” a lembrança de uma estante exígua ao lado do toucador de barbearia, na qual encontrou vários livros de Voltaire, com sinais evidentes de terem sido possuídos e lidos por um leitor que neles deixara o rastro das suas observações — por escrito nas margens dos livros outrora generosos na oferta desses espaços reservados aos leitores…

Os bibliotecários e os bibliófilos desta nossa pós-modernidade têm este hábito, prosaico e pouco asseado, como gesto de menosprezo pelo livro-papel. Como se o livro não passasse de uma escultura a ser vista e conservada longe dos predadores — preservado da incontinência dos cupins e dos leitores. Sou destes rabiscadores, confesso. Estas anotações indisciplinadas são testemunhos da aplicação do leitor. São as impressões digitais deixadas pelo leitor ativo, receptor e emissor de ideias mal acondicionadas.

Empresto livros como quem se despede de um ente querido, com um adeus triste a um amigo estimado. Só o faço como gesto extremo de quem pretende preservar relações de amizade fortalecidas pelo tempo. Fi-lo poucas (caspita!) vezes. Em uma dessas concessões pranteadas, cuidei não receber o livro de volta. Recebi-o, creiam. Recheado de anotações. Todas, porém, seguidas de uma interrogação. As páginas retornaram carregadas de dúvidas e hesitações; nenhuma afirmação ou contestação. Nenhum gesto audacioso de discordância. Só o perfil majestático de um ponto de interrogação! Via-os como uma forma acintosa e pouco decente de “coitus interruptus, inter femura”.

??? Era um leitor interrogativo, perquiridor, desprovido de senso crítico.

Ao iniciar-me como estudante de Direito, aluno do eminente professor Henrique Girão e de Dolor Barreira, de Heribaldo Costa, Fran Martins, Wagner Barreira e Luiz Cruz de Vasconcelos, tive, por felicidade, o aconselhamento sereno e aplicado do meu avô pelos caminhos da ciência jurídica.

Não me tornei advogado, como seria de presumir fosse está a minha intenção, graças ao desvio que tomei dos caminhos das ordenações e regramentos das leis. Mas agucei as minhas abas e plataformas críticas sobre o direito e os seus conspícuos xamãs, nas beiradas do Estado. Por isso mesmo reconheço as virtudes e a cultura de um jurista e de um advogado — à distância. Tenho os melhores interlocutores entre eles. Dentre os bons, deles fiz bons amigos.

Ainda jovem, no desabrochar para a vida, ouvi graves e justos aconselhamentos. “Com médicos e advogados não se briga. Nunca se sabe o que deles podemos esperar…”

Havia quem recorresse a anátemas fulminantes, condenações sem perdão: “Que leves o resto da tua vida entre advogados…”

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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