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Garrincha, Rexona e Apple: só faltou combinar com os russos; Por Pádua Sampaio

Por Pádua Sampaio
Articulista do Focus

“Você passa pelo primeiro, dribla o segundo, passa pelo terceiro, corre pela linha de fundo e cruza. Aí é só marcar o gol”, disse Feola a Garrincha e demais jogadores no intervalo de Brasil x URSS, Copa de 1958. O Garrincha respondeu: “certo, professor, mas o senhor já combinou isso com os russos?”

Combinar com os russos, ainda que tacitamente, é parte importante dentro do processo de comunicação. Buscar ressonância com aquilo que se diz e faz para engajar ou mesmo mitigar riscos em campanhas é do métier e jamais pode ser desprezado. Sobretudo em um mundo cada vez mais plural, que por sua vez tem tornado as marcas menos dispostas a correr riscos, já que a sensibilidade do consumidor pode refletir rapidamente na sensibilidade dos números nas vendas.

Só que há um efeito colateral nessa calmaria: a ausência de adrenalina e aprendizado com os próprios erros. Isso pode fazer com que a zona de conforto fique tão confortável que, ao decidir se lançar ao mar da irreverência para caçar consumidores, as marcas acabem sendo fisgadas por elas mesmas, enredadas no próprio discurso. Aí os russos reclamam, e muito.

Recentemente, vimos dois exemplos bem claros de polêmicas bastante evitáveis pela pura incapacidade de prever o óbvio. Para divulgar seu Ipad Pro 2024, a Apple – que já fez muitos golaços no passado em propagandas – criou um comercial que mostrava objetos sendo destruídos por uma enorme prensa hidráulica. Detalhe: objetos que representam as mais variadas manifestações criativas do ser humano: esculturas, tintas, instrumentos musicais etc.

Para milhares de pessoas, foi perturbador ver um piano de cauda, violão, livros, máquinas fotográficas se esfacelando pela força da prensa, captados em big close, enquadramento que em uma aula de semiótica qualquer seria facilmente relacionado a requintes de crueldade.

Diante de tamanho barulho e destruição – literalmente, neste caso – restou à companhia pedir desculpas e lamentar pela peça para lá de infeliz.

O segundo caso não é menos grave. A Rexona, buscando se aproximar do público do futebol, também conseguiu tropeçar nas próprias pernas. Fechou um patrocínio milionário da Copa América e contratou o Ronaldinho Gaúcho para – vai, agora é com você: dizer palavras de apoio e incentivar os jogadores.

Essa passou longe.

A Rexona contratou um ídolo do futebol mundial para ele dizer que “esse é talvez um dos piores times (nossa seleção) dos últimos anos, que não tem líderes de respeito, apenas jogadores medianos”. A “big idea” era revelar após alguns dias que tudo não passava de uma ação de marketing para gerar reflexão e trazer para perto da seleção a sua imensa torcida (só não me perguntem como, por favor).

Dessa vez, além dos russos, faltou combinar com os próprios jogadores do Brasil, que não sabiam de nada e gostaram menos ainda dos desaforos que ouviram. “Foi um baque pra gente, discordo completamente”, falou um dos convocados.

Em entrevista a jornalistas, a marca sustentou a estratégia. Haja inspiração – e apesar do bom desodorante – transpiração para defender que deu tudo certo: “gerou o que de fato estávamos buscando, uma reflexão”. Será que não dava para gerar essa reflexão de uma forma mais sutil e menos traumática?

Duas pisadas de bola e duas posturas diferentes. Mas afinal: o que une ambas estratégias?

Antes de mais nada, a inocência que os impediu de prever cenários pós-implementação da ideia. Uma mensagem da Apple e muito menos do Ronaldinho Gaúcho criticando a seleção brasileira de forma tão contundente jamais passariam incólume. E convenhamos que não precisa ser nenhum Kotler ou Mãe Dinah para saber que nesses casos haveria problemas pela frente. Isso tem a ver com o motivo número dois: sensibilidade.

Os argumentos utilizados nas mensagens são exatamente iguais. São verdades muito inconvenientes para serem ditas assim, abertamente.

De forma geral, há um sentimento ou receio ou medo ou que for, de que as IAs substituam muito em breve os humanos. A prensa representou para muitos a vitória da tecnologia sobre o homem, agora subjugado às máquinas. E como argumentar com milhões de consumidores mundo afora que não é bem assim? Mais fácil pedir desculpas e seguir o jogo.

A Rexona também mexeu num vespeiro. Não conseguiu perceber – talvez por querer fazer parte do mundo do futebol, mas ainda não viver o mundo do futebol que há também um sentimento latente de descrédito, desapego, desânimo para com a nossa seleção, famosos em seus clubes europeus, mas com pouca identificação local.

Uma verdade que permeia grupos de Whatsapp, bares, conversas de pai e filho (“é porque você não viu o Zico jogar, o Evair jogar, o Júnior jogar, o Romário jogar”), mas que ainda não havia sido abordada por uma patente tão alta. Some-se a isso o fato de que no ambiente das redes sociais o dissenso, a fofoca, o tumulto sempre vai ter mais espaço do que a retratação ou a revelação, em se tratando de uma ideia.

Nos dois casos, faltou o básico: a presença do querido e velho bom senso; alguém que levantasse a mão no meio da reunião de apresentação dessas ideias e, com a mesma habilidade do Garrincha com os pés, previsse e contornasse esses problemas. Algo não muito difícil, vamos combinar. Combinar entre nós.

Pádua Sampaio é publicitário, empresário, professor e colaborador do Focus.jor, no qual assina artigo às quintas-feiras.

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