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Da Barra do Ceará ao Alagadiço, dito São Gerardo; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Alcântaras, Sidrins, Magalhães, Albanos, Fujitas e Teixeiras, as chácaras, os pomares e as lembranças quase esquecidas*

Por Paulo Elpídio de Menezes Neto
Articulista do Focus

Fortaleza de São Sebastião, na Barra do Ceará. O autor é Arnold Montanus ((Amsterdã 1625 – Schoonhoven 1683). Retratou as “terras novas” das expedições holandesas no Brasil.

Diz-se da Barra do Ceará ser o bairro mais antigo de Fortaleza. Foi, por assim dizer, o ponto inicial da colonização da província do Ceará. Ali, Pero Coelho fez assentes as bases de ocupação do território do que viria a ser o Ceará. A construção do Fortim de São Thiago da Nova Lisboa assinalou a decisão dos ocupantes do lugar de defender a sua posse.

Os indígenas ofereceram resistência aos destacamentos militares dos primeiros exploradores, e a irregularidade das chuvas criaria condições desfavoráveis para os contingentes de ocupação e defesa do território. Vem daí o traço predominante desta “civilização do couro”, economia precária baseada na criação de gado e em um extensíssima agricultura em terra infértil, secada pela falta das chuvas.

Os primeiros “visitantes”, corsários e flibusteiros, de passagem ou a mando da Coroa portuguesa e por outros aventureiros e mercenários…

Martim Soares Moreno construiria nos mesmos assentamentos do Fortim San Thiago o estabelecimento militar que o sucedeu, o Fortim de São Sebastião. Passaria pelo lugar, anos depois, Jerônimo de Albuquerque, explorador e servidor da Coroa, donatário e comandante militar. As instalações pobres e destituídas das condições que lhe garantissem conservação, esse equipamento militar era presa fácil do ataque dos índios e da ação do tempo. Os postos de defesa eram temporários, abandonados e reconstruídos, circunstância que denunciava a pouca persistência dos colonizadores na manutenção do aparato militar em defesa de solo conquistado por monges e embarcadiços, a serviço da pecúnia e da fé.

Pondo os pés na terra nova
Tais circunstâncias não impediram que se formasse povoado disperso pela vizinhança, tendo a desembocadura do Rio Ceará como espaço de fixação. Pero Coelho foi o primeiro representante da Coroa portuguesa em território das capitanias do Ceará, Sergipe Paraíba e Rio Grande do Norte.

Designado Capitão-mor para “desbravar, colonizar e impedir o comércio dos nativos com os estrangeiros”, Pero Coelho foi, de fato, o instrumento da expansão da penetração territorial, tendo iniciado a construção e as obras de reconstrução de vários estabelecimentos de defesa e da administração, aglomerados que dariam lugar aos grupos populacionais que se foram fixando pelo litoral e em direção à chapada da Ibiapaba. Como chefe militar, combateria os indígenas e os franceses em suas sortidas pelo nordeste do Brasil. Poucos cronistas e historiadores ocuparam-se dos sertões do Ceará e da penetração lenta e desregrada do território cearense quanto Carlos Nascimento Silva em “A Casa da Palma” [“A Casa da Palma”, Relume Dumará, 1995, Prêmio Jabuti].

De Alagadiço a São Gerardo, o esquecimento das origens de um bairro
Estas são as bases do florescimento de pequenos assentamentos populacionais pela região, com extensão pelo litoral, até alcançar Fortaleza. Entre a Barra do Ceará e a Barra do Rio Cocó, estendeu-se o arruado que viria a ser chamado de Alagadiço.

Alagadiço, como nomeação do bairro sobreviveu até os anos 1930, quando adotou São Gerardo como patrono e protetor. Neste tempo, os bairros e subúrbios da vizinhança próxima, distante ou adjacente – Farias Brito e Otávio Bonfimeram ligados pela linha do bonde que partia da praça do Ferreira até o ponto final, à altura do Colégio Santa Isabel. Alagadiço perdurou no imaginário popular, apesar do prestigio que a fé católica emprestava a Sâo Gerardo.

Em Fortaleza Nobre, a autora, a historiadora Leila Nobre reconstitui com precisão e ricas informações o roteiro da linha, expondo a topografia urbana do longo caminho percorrido entre a praça do Ferreira e o Alagadiço. Impossível, não ceder à sedução da descrição que Leila Nobre faz dos “fícus benjamins” e do sombreado que levava no final da tarde as famílias do bairro: “famílias inteiras ali residentes se abrigavam como passatempo debaixo de copiosas árvores”.

Dessa visão paradisíaca que, como menino, dela desfrutei, pouco ou quase nada restou. O traço impiedoso do urbanismo dos “bota-abaixo” levou tudo com o gesto poderoso de quem apaga para recriar uma modernidade duvidosa. O Alagadiço, como outros bairros – o Benfica, a Aldeota, Parangaba, Messejana, Mondubim e a Praia de Iracema – exibem as marcas visíveis das sobras dessa destruição definitiva.

A teimosa sobrevivência de muitas lembranças
Fortaleza Nobre, coordenada por Leila Nobre apresenta ampla perspectiva documental e histórica do bairro. Não me servi das informações sistematizadas pela historiadora urbana de Fortaleza, embora recomende a sua leitura por quem pretenda ampliar as suas referências sobra os bairros da cidade de Fortaleza e dos seus principais logradouros. Trouxe a memória esquecida de uma terna aglomeração familiar e de personagens que já não cabem na bacia das lembranças de uma cidade que destruiu o seu passado.

Tomei o Alagadiço de memória guardada: por ali moraram tias minhas, galhos de velhos troncos de Ipu – as Teixeira. A minha mãe, Zuíla, foi criada por essas quatro irmãs, sobreviventes, em idade longeva, de uma família numerosa, órfã de pai e mãe, nascida em berço com muitos irmãos dos quais apenas um chegaria a conhecer. Deles foi separada no Rio de Janeiro, onde moravam, com os cinco irmãos menores.

Fortaleza – Mercado Público ou Mercado de Ferro – 1909 – Arquivo Nilson Cruz

Tomo como limites do Alagadiço, na minha geografia afetiva, o mercado do Ferro ou Mercado da Carne como era chamado pelos anos 1897, cuja estrutura metálica fora importada da França e por longos anos permaneceria no local até a sua transferência para a Aldeota. Chamava-se de praça Paula Pessoa.

Essa gente que povoou e “criou” o Alagadiço
Entre este logradouro, hoje chamado de Praça São Sebastião, e Otávio Bonfim, nos dois lados da via pública, estendiam-se a perderem-se de vista os jardins e canteiros do Jardim das Flores, cultivados pelas primeiras famílias nipônicas – os Fujitas, raiz de um enorme prole de cearenses, com respeitável tradição na área médico-farmacêutica – a chegarem ao Ceará. De bonde, na lenta travessia daquele trecho, era de ver-se o arranjo das flores e rosas que de lá saíam.

Otávio Bonfim era a primeira parada obrigatória das composições procedentes da Estação João Felipe, na rua dr. João Moreira, praça Castro Carreira. Uma leve concentração fabril, de características artesanais, a fábrica de sabão, anunciava o começo do Alagadiço, na sua ampla abrangência. O Grupo Escolar Franklin Roosevelt, celebração dos feitos aliados da II Guerra abria, neste ponto, vista sobre a larga e ensombrada avenida Bezerra de Menezes.

Instituto dos Cegos do Ceará, fundado em 1943 na Av. Bezerra de Menezes, 892 – São Gerardo.

A edificação do CPOR, pertencente ao Exército, foi com a Escola de Agronomia, a Secretaria da Agricultura, o Instituto dos Cegos, a Casa de Saúde São Gerardo, ulteriormente, Instituto Wandick Ponte e o Colégio Santa Isabel, a referência formal da presença de instituições públicas naquele ponto da cidade… A paróquia de São Gerardo funcionou desde a construção da igreja em centro comunitário de relevantes serviços prestados à população do bairro.

A ferrovia dos Boris cortando e fumegando pelos descampados de Soure
Sítios, algumas fazendas e chácaras, pomares, residências e uma população disseminada pelas ruas transversais era o entorno ampliado da avenida Bezerra de Menezes – o portão de saída para Soure, depois denominada Caucaia –, acompanhava o leito da ferrovia da linha de trens Fortaleza-Sobral, na sua origem empreendimento privado dos irmãos Boris, família de ascendência judaico-francesa há duas gerações instalada em Fortaleza, com negócios de transportes marítimo e atividades comerciais e bancárias. Meu tio, Antônio Teixeira, não se livrou da falência nos seus negócios de incauto fornecedor de dormentes para a construção da ferrovia…

Proprietários bem arrimados de bens e patrimônio faziam vizinhança com famílias classe-média, comerciantes e funcionários públicos, médicos, pequenos negócios de granja e a prestação de serviços miúdos.

Recém-chegados, herdeiros, assentados e proprietários e herdeiros de rasos minifúndios

Dois cearenses revolucionários de 1930 ladeando Getúlio Vargas. Juarez Távora (terno branco), Getúlio Vargas e Juracy Magalhães (terno escuro, de óculos), um ano após a vitória da Revolução de 1930. Juarez e Juracy romperam com Getúlio depois do Golpe de 1937.

Família numerosa eram os Magalhães, deles o mais ilustre viria a ser Juracy, militar e politico, um dos nomes mais respeitáveis da Revolução de 30. Aluno do Liceu do Ceará, no qual concluiu o segundo grau, casou com Lavínia Borges Magalhães. A família iria fixar-se na Bahia, estado do qual Juracy Montenegro Magalhães viria a ser governador da Bahia e candidato à presidência da República. Foi Ministro das Relações Exteriores, primeiro presidente da Petrobrás e da Companhia Vale do Rio Doce, as duas maiores empresas brasileiras. Eram seus pais Joaquim Magalhães e Júlia  Magalhães. Dos filhosJuracy, Jutahy, Jacy e Japy.

Das chácaras e dos sítios que mantinham proximidade com as divisórias que os aproximavam e separavam em cordial vizinhança, o sobrado do dr. João Mota e d. Estefânia e os filhos que iam nascendo, Álvaro, Eliete, Fernando e Simone, ocupava área ao lado da casa paroquial. Propriedade maior, de larga extensão, a partir da avenida Bezerra de Menezes, acolhia a família Galdioso, com vários hectares de terra. Nestes espaços, ao lado da igreja, realizavam-se as famosas quermesse de São Gerardo.

Waldemar, Dolores Alcântara e filhos. Entre eles, o futuro governador Lúcio Alcântara. A foto de ecervo familiar foi tirada na varanda da casa da família, na Bezerra de Menezes.

José Waldemar de Alcântara e Silva veio com Dolores e instalou-se em uma casa que resistiu enquanto lhe foi dado subsistir aos encantos da modernidade recém-desembarcada entre os cearenses. Não custou tornar-se Waldemar Alcântara, médico, um dos cinco fundadores da Faculdade de Medicina do Ceará, senador, deputado federal e governador do Estado, por muitos anos, um dos líderes mais destacados do PSD cearense. Dos filhos, dois seguiram a vocação paterna, tornaram-se médicos, Lúcia e Lúcio, Luiza, bibliotecária e Lília, arquiteta. Lucio Alcântara foi deputado, secretário de governo, senador e governador do Estado. É escritor, editor, membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará, com numerosos livros publicados.

Um bibliólogo respeitado, conhecedor dos livros e da sua engenharia e arquitetura, alfarrabista, colecionador paciente e contumaz de raridades editadas em papel. Como bibliófilo e leitor obsessivo faz vizinhança com Maria Beatriz na Academia e nas suas bibliotecas particulares. Gutenberguiano levado pelo espírito de conciliação, virtude celebrada como politico, não recusa as novas vias da comunicação virtual, procura a ela ajustar-se e à sua linguagem.

Ao lado, a família de Manuel Pio Sarava Leão e de Eunice Saraiva Leão. Pedro Henrique, médico, cirurgião, poeta, ensaísta e escritor, pai de Luiza e Paulo, com Luiza Alcântara; casado em segundas núpcias com Maria das Graças Accioly, com quem teve uma filha, Inez Carolina.

Pedro Sidrim e Carminha formaram uma alegre família de muitas mulheres e homens, base afetiva na qual cresci, conquistado pelos apelos de afeição. Nesta companhia compartilhei  de momentos que trago de memória e muita afeição até hoje compartilhada. Júlia, tia Júlia, era uma criatura amada, irmã de Carminha, adorável criatura que encheu de surpresas e descobertas a minha infância. Esta família, dos Sidrim, ganha o espaço de um capítulo na cumplicidade afetiva de meus avós. Pedro Freyre Sidrim, pelo Freyre, primo de minha avó, tinha por pai Emiliano Correia Sidrim, nome que daria a um dos filhos. Casou com Maria do Carmo Cordeiro Cavalcante, Carminha. Filhos, Cleonice, Emiliano, Laís, Pedro Filho, Jacyra, Fernando, Aglaís, José e Mirtes. A saga desta família é uma tessitura de personalidades vibrantes; delas, das com quem convivi na infância, guardei o retrato vivo e persistente nos meus guardados de lembranças.

Do Colégio Santa Isabel guardo lembranças remotas e doloridas das visitas que fazia à minha irmã, interna, de onde saía a cada mês, submetida aos severos ordenamentos de regras para as quais, até hoje, não encontro razões para suportá-las. Felizmente, sobrevivemos os dois  à amarga experiência vivida, inteiros, suponho, já não guardo certezas deste alivio em atraso.

Chácara Nous Autres, residência de João Tibúrcio Albano, tio de José Albano, no bairro Alagadiço.

Dos Albanos ficaram muitos registros na literatura, na poesia e no magistério, e na geração próxima, artistas e fotógrafos consagrados pela sua produção. A estirpe dos Albano tem sua origem em Santa Catarina. Pelos anos 1830, já se tinha conhecimento e registro de José Francisco da Silva Albano, barão da Aratanha, rico comerciante e militar. Albano veio por acréscimo como distinção dos seus primos homônimos. A Chácara “Nous Autres” seria o ponto referencial da família na avenida Bezerra de Menezes.

O Padre Misael Gomes, historiador e professor do Escola Militar do Ceará morava a duas quadras das Teixeiras, da estreita intimidade da família Sidrim.

As Teixeiras eram, se bem me lembro, quatro velhas senhoras, irmãs do meu avô Francisco de Paula Teixeira, casado com um certa Elvira, portuguesa, com certeza.Acolheram  a menina Zuíla, devolvida à família em tenra idade pela falta dos pais falecidos no Rio de Janeiro. Era uma casa enorme, herança de família, em frente à igreja de São Gerardo, na qual cada uma das irmãs, e em discreta reserva, guardava as dores por esquecer e as mágoas acumuladas por tantos anos de duvidosa intimidade e desafeição dissimulada.

Zuíla tornou-se moça, ali, rodeada dos azedumes e de alguma alegria perdida daquelas graves senhoras, duas viúvas, e mais duas, recolhidas à sua irrecorrível virgindade. De José Bernardo Teixeira e Rita Josephina Teixeira nasceram 16 filhos, dos quais  quatro filhas sobreviveram no velho casarão do Alagadiço: Felina,  Mundola, Amélia, Dondon e Amália. Perdurou com as minhas recordações de adolescente a figura de tia Felina, moça no beirar dos 90 anos, pura e ingênua, com uma bondade desmedida… A casa, único bem que a aposentadoria de duas delas garantia, fora deixada em testamento por antecipação ao recolhimento que viria um dia a uma casa de saúde mental, ali, no quarteirão vizinho, a caminho das suas caminhadas diárias para as preces de recolhimento e espera.

A Escola de Agronomia e a consolidação do campus do Pici, da UFC

Fundada a 30 de março de 1918, a então Escola de Agronomia do Ceará contribuiu significativamente para o ensino superior no Estado como um dos principais alicerces para edificar a UFC, a primeira universidade cearense, em 1954.

Restaria, para encerrar, o cenário do Alagadiço que fixei tomado de velhas memórias gastas pelo esquecimento, falar da Escola de Agronomia, berçário do extraordinário experimento científico que se incorporaria à Universidade Federal do Ceará.

A ciência-pura que produziria, ao longo do tempo tanta pesquisa e tantos talentos, nasceu ali, para ganhar visibilidade nos seus nichos reservados. Naqueles espaços enormes, uma base militar abrigaria os aviões que sobrevoariam o Atlântico, os zepelins que faziam a ronda noturna dos submarinos alemães nas costas do Ceará, ali se concentraria a área científica de uma jovem universidade que completa, neste ano, os seus primeiros 70 anos de existência.

O Pici acolheu os propósitos e sonhos ambiciosos de Antônio Martins Filho e de um círculo de espíritos adormecidos que a UFC acordou e lhes deu asas nos espaços da nossa Alma Mater.

*[Com os agradecimentos devidos a Marlene Menezes de Albuquerque, minha irmã,  pelas correções necessárias e as valiosas informações que enriqueceram o texto]

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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