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Carta de navegação e cabotagem em maré vazante na Praia de Iracema; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Foto aérea da Praia de Iracema, provavelmente no início dos anos 1950. Fonte: IBGE

Adeus praia de Iracema,
Praia dos amores que o mar carregou
Luiz Assunção

Contabilidade sentimental e afetiva dos moradores do Poço da Draga, da Ponte Metálica, da Praia de Iracema e das suas perdidas ilusões

Por Paulo Elpidio de Menezes  Neto

Fui criança na praia de Iracema. Ali nasci e cresci. Meu pedaço foi a rua dos Pacajus.

Naquela quadra moravam famílias de cuja memória as lembranças guardadas estão cheias de afetuosos registros. Não era raro que mantivessem casa de aluguel ou imóvel próprio para as temporadas de praia, uma espécie de “estação de águas”. Vinham nos períodos de férias escolares a tomar sol, banhar-se ou assistir à chegada das jangadas, ao final da tarde…

A rua dos Pacajus espelhava uma vila hanseática, livre, burguesa e silenciosa, salvo a algazarra da meninada a correr e gritar dando vida a uma vizinhança silente. O calçamento de pedras toscas emprestava à ruazinha, um impasse fechado por duas ruas secundárias, no coração da praia de Iracema, um certo ar provinciano dominado pelo cheiro forte do mar contingente. De moradores remidos, D. Anita Gentil, os Fiuza e as belas mulheres de uma família de gente bonita; D. Noemi e Francisco Markan Philomeno Gomes, com Yeda e Gegê; D. Maria José e Álvaro Weyne, D. Marieta e o sr. Antonio Miranda, “croupier” do cassino do Ideal Clube; mrs. Sanders preceptora de inglês, recatada nos seus comedimentos britânicos; os meus avós, Oda e Paulo Elpidio de Menezes, os meus pais, Zuíla e Paulo Elpidio de Menezes Filho, os Salgado, os Montenegro, dentre os mais jovens uma vocação realizada de brigadeiro-do-ar. O então major Murilo Borges, futuro prefeito de Fortaleza, compunha o braço do prolongamento da rua dos Tabajaras; D. Benvinda e o dr. Aderbal Sales, pneumologista, e mrs. D. Arisa e monsieur Bertrand Boris, cônsul honorário da França, emprestavam um ar bem composto de cidadãos franceses em terras estrangeiras, legionários com raízes assentadas no Brasil. O sr. Aziz Ary e a família numerosa, ele, por sua vez, Consul do Líbano; os Mamede, um deles, Mário, médico respeitado e filantropo, vasta cabeleira precocemente embranquecida, o primeiro comunista que enxerguei à luz do dia; o médico Walter de Moura Cantídio, futuro reitor da UFC; o professor Leonard Martin, professor de física da Escola Normal, francês de nascimento, a esposa D. Doninha e filhas, Margarette e Marguerite; os Esteves, os Moreira da Rocha, a viúva de um governador; a família Amora, os Sales, Nicinha e Paulo, herdeiros do Foto Sales, ele cineasta e documentarista, e muitos outros irmãos. Os Sabóia, dona Sinhá e Luiz Sabóia de Albuquerque, e os filhos Fran, Benvinda, Aline, Ângela , Regina e Luizinho. Ana Miranda, e Zuíla, sua mãe, ainda criança, escritora anunciada que o futuro consagraria, amiga de Zuíla, minha mãe e de Marlene.

O restaurante Ramon defronte o mar de Iracema

O Hotel Iracema Plaza, o restaurante Ramón; o restaurante Lido, a pousada da Cruzeiro do Sul onde se recolhiam as tripulações e as lindas comissárias de bordo para quem  dirigia os meus impulsos e fantasias lúbricos adolescentes; o Ideal Clube; o dr. José Cardoso de Alencar, criminalista, em seu sobrado; a doutora Menininha Cavalcante e o professor Lauro Nogueira de quem, anos depois, eu viria a ser aluno na Faculdade de Direito; o “Zé Goela”, à espera do bonde, na ponte dos Ingleses, doido varrido, adotado afetuosamente pela população do bairro; a Vila Z-2, Colônia de Pescadores, já celebrados pelo périplo de jangada ao Rio de Janeiro; e os que vinham por temporada, para os banhos-de-mar de cura ou pelo prazer das águas mornas do lugar; d. Alda e o dr. Edmilson Barros de Oliveira, e a meninada com a qual me misturei alegremente nos brinquedos dos parques de diversão, pagos por assinatura antecipada e sem limites de uso, pelo dr. Edmilson Barros de Oliveira; Maria de Carvalho e Antônio Martins Filho e os sete filhos, entre eles Zuleide, a quem me renderia caído de amores, anos mais tarde, sem limite de validade; e d. Zezé e Moreira Campos, por aqueles tempos, simplesmente José Maria, funcionário da Companhia Nacional de Navegação Costeira. Natércia e Marisa, duas garotas em formação por quem sofri as primeiras dores da paixão adolescente… Anos depois, era o Mincharia que se arrancharia entre estas velhas tralhas e lembranças perdidas… Agora, Ismael Pordeus, da estirpe dos Pordeus, vive ali em seu sobrado, a derramar os seus olhos pelo litoral, perlongando com o olhar perdido as terras distantes das costas d’Africa… Ernesto Sabóia, de família sobralense; o diretor da RVC, dr. Rocha, progenitor de Marta Rocha, homônima pelo nome e pela beleza, da inesquecível miss Brasil.

O “Pirata” abriria as suas portas anos depois, em época mais recente. Nas fronteiras da boêmia e das tertúlias políticas, convergiam para aquele alegre entreposto de ideias e imponderáveis conjecturas os jovens rebentos das novas oligarquias presumidas.

Ignez Fiúza, já por esta quadra, encantava com a sua beleza, compartilhada com muitas irmãs e as mulheres da família Gentil, somadas estas bases de irrecusáveis traços estéticas, formava-se a maior concentração de beleza feminina da praia de Iracema. Ignez foi presença marcante na vida cultural de Fortaleza, “marchant” bem sucedida, “restaurateur” e “promoter”.

Estoril, antiga Vila Morena, foi o clube frequentado por militares dos EUA durante parte da Segunda Guerra. De longa história das noitadas de Fortaleza, hoje o prédio pértence à Prefeitura e abriga a Secretaria do Turismo.

Do U.S.O., cassino de oficiais da USAF, United States Office, na antiga vila Morena, denominação de origem, ficou o registro da passagem americana, durante a guerra, e a animação das “meninas” — as “coca-colas” — enxameadas nos caminhões de tropa que as conduziam a insuspeitadas paragens. Tomei no lugar, pelos meus 10 anos, a minha primeira Coca-Cola, sob o olhar divertido  de meu pai… Feito Estoril, a lembrar as belezas de Cascais, na sua versão atualizada, o velho casarão abriga, hoje, uma secretária de turismo, mas já acolheu entre suas muitas paredes, repartições, bares e restaurantes, em um arco de amplo espectro que cobre a boemia e os escalões mais influentes da burocracia…

O Jangada Clube, era ali que se aninhavam, em gestos e hábitos de acento polido e britânico, distintos varões assinalados da sociedade cearense, sob o comando de Fernando e Raimundo Pinto, em reuniões festivas e na intimidade de amizades escolhidas. Referência da riqueza da província, os homens de negócios costumavam trazer personalidades ilustres, em dias de celebração, entre eles, Orson Wells.

A Mansão dos Inocentes, em prédio debruçado sobre a praia, era governada com pulso de ferro e largas concessões de bom gosto por Hélio Guedes Pereira, senhor absoluto das armas impiedosas da beleza feminina. Por lá reuniam-se cidadãos acima de qualquer suspeita, alguns, suspeitos confessos, em prolongadas tertúlias e perquirições científicas sobre a estrutura afetiva e anatômica do sexo feminino.

Ao fim ou no começo da rua dos Tabajaras, onde se erguem a igrejinha de São Pedro e algumas residências, balançavam-se as palmas de um coqueiral verdejante cujos espaços de areia branca, “sub tegmini fagi”, serviam a uma aguardada ocupação para as quermesses, os parques de diversões, de passagem pela cidade, e os circos mambembes com suas cores e animação de espetáculos de palhaços e lindas trapezistas que seduziam e encantavam a meninada. Tive ali a minha primeira paixão, um alumbramento, provido em sonho de uma linda dançarina cheia de curvas euclidianas…

Francisco Jose do Amaral Vieira, de quem o futuro falaria pelos seus feitos de cientista e biólogo, adolescente para os lados da Gentilandia, deixara os livros e cadernos sobre a calçada, em uma manhã de sol, e largara-se, tonto de liberdade e de quimeras, para acompanhar uma domadora de elefantes em um arrebatador desfile de circo de cavalinhos de onde voltaria ao berço familiar, sob vara e insultuosas imprecações paternas, trazido pelo pai desembargador…

Por fim, veio o prédio do “Iracema”, projeto composto à moda de um imenso puzzle, como se fora peças soltas de montar, reunidas em um conglomerado arquitetônico ao qual faltaram unidade e coerência, mas não ousadia e dinheiro para o cumprimento dos desejos do “seu” Pedro que construíra  prestígio e fortuna em torno de muitos negócios. “Seu” Pedro, astuto e empreendedor, empresário bem sucedido, reinventara a rede de dormir e a industrializara em suas fábricas de Jacarecanga.

Hotel e condomínio, a um só tempo, com proprietários e inquilinos, abonados uns, outros, nem tanto, artistas, solteirões assumidos, maridos em vilegiatura, o “São Pedro” tornou-se referência “kit” na cidade. A arquitetura, a lembrar uma pirâmide, seguia as instâncias de um projeto “em construção”, renovado a cada visita do proprietário. O Hotel Iracema Plaza, atraente com as suas janelas, qual mansardas e audaciosas projeções não disfarçavam as formas geométricas de caixas sobrepostas, um monte de “containers”, como os chamaríamos hoje, espalhados generosamente pelos enormes espaços dos passos perdidos, caprichosamente dispostos pelos andares de 360 graus “around”, com vistas para todos os horizontes — a lembrar um enorme “bateaux-mouche” estacionado em um cais deserto… São Pedro foi nomeado o prédio, Iracema Plaza, o hotel.

Da memória daquela cidadela de largos corredores e amplos espaços, ficou o registro dos seus habitantes-moradores, inquilinos de aluguel ou proprietários remidos e invejados, a imagem já esmaecida do restaurante Panela e do Tony’s, praça estrepitosa da juventude daqueles longínquos anos de 1950 — e dos  “rabos-de-burro”, os contestadores dos costumes, burguesinhos de cuidadas origens reconhecidas… O “Panela” fez época como restaurante, sob o prestígio de Lúcio Brasileiro, um dos inquilinos ilustres do lugar.

Bem antes, empinávamos, dali, os da minha idade, os papagaios, “arraias”, como chamávamos esses artefatos artesanais, olhos postos no firmamento tomado de sol. Sobre os descampados e a “ torre-do-radio” voava o zepelim, nos tempos de guerra. Enquanto o mundo se dilacerava, em clima de carregadas incertezas, as bases aéreas do Cocorote e do Pici tornaram-se a última escala  das “fortalezas-voadoras”, antes do voo épico sobre o Atlântico incomensurável, com pouso para abastecimento em Dakar, de onde estendiam as suas asas de alumínio sobre os desertos do Sahara para Londres e, de lá, para o bombardeio das rotas nazistas na Europa.

O “Iracema” e o “São Pedro” são uma única imagem e persistente, pungente e viva de recordações, presa nas saudades daqueles que foram jovens nos seus territórios de ouro encantado e aventura. Deixamos, ali, a botija das nossas alegres buscas adolescentes — a graça dos verdes anos e as primeiras esperanças abandonadas…

A praia de Iracema foi consumida pela memória esquecida do seu passado. E pelo avanço do mar, o mesmo veio d’água por onde chegaram navegadores e corsários, portugueses, holandeses, franceses e os turistas predadores que aportam pelas praias do Ceará… Dalí  partiu em embarcação singular o primeiro governador do Ceará, Martim Soares  Moreno, abraçado a Moacir, “filho da dor”, como Ulisses na viagem de volta aos braços de Penélope…

O prédio que se destaca é o mais antigo hotel da praia de Iracema, chamado simplesmente de Hitel Iracema.Ainda existe, vestido em uma roupagem modernista pavorosa. O trecho corresponde precisamente à rua dos Pacajus, Veem-se o Ramón e a casa dos Gentil.

O Titã foi, como reconhecem os entendidos, oceanógrafos juramentados, de fé acreditada, o responsável pelo avanço das águas atlânticas sobre a cidade de Fortaleza. Pedra sobre pedra, a máquina monstruosa foi alongando o “quebra-mar” do Mucuripe e empurrou com o desvio incontido as marés na direção da rua dos Pacajus. Do quarteirão, que limitava e acondicionava a pequena, as ondas destruíram com as suas vagas o que parecia representar a sua alma, — o Ramón —, designação familiar para o restaurante mais frequentado pelos visitantes que por aqui aportavam.

Criado e cuidado pelo velho e arreliado Ramón, exibia os frutos do mar que jangadeiros aprisionavam nas beiradas do litoral a uma clientela cativa dos habitantes do lugar e aos caminhantes de passagem.

Assisti, criança, não teria mais de cinco anos, em uma noite fatídica e trágica, o “tsunami” que avançou sobre a rua encantada, de tantas lembranças guardadas.

Fachada com sobrado da casa na qual o autor, Paulo Elpídio, passou sua infância na Praia de Iracema, rua Pacajus, 68.

Da janela do sobrado de meu avô, testemunhei o esforço do velho Ramón e de seus empregados a arrastarem o mobiliário, geladeiras e frigoríficos e as sobras do pescado, para os terem a salvo. Vi meu avô, ombreando aquela gente em desespero, a carregar as miudezas para a calçada. Depois, em impulso próprio ao seu temperamento, recolheu os bens de maior valia à sala de visita da sua casa, no número 68 da rua dos Pacajus, parte inseparável das minhas distantes lembranças juvenis.

A maré revolta pôs abaixo a “torre do rádio”, cercou a casa do “rádio” onde moravam os Mamede. Interrompeu a avenida Beira-Mar, que ainda não ostentava tão distinta designação.

O recentemente demolido Iracema Plaza, que marcou época em Fortaleza. Ao fundo, a Igreja de São Pedro. “Ao fim ou no começo da rua dos Tabajaras, onde se erguem a igrejinha de São Pedro e algumas residências, balançavam-se as palmas de um coqueiral verdejante cujos espaços de areia branca serviam a uma aguardada ocupação para as quermesses, os parques de diversões, de passagem pela cidade”

Os bondes chegavam até à “igrejinha” de São Pedro, vindos, arrastados e indolentes, da praça dos Leões, da parada, ponto de partida ou fim de linha entre o Hotel Brasil e a Assembleia Legislativa, de onde começava o seu percurso, descendo pela Floriano Peixoto, para tomar impulso na descida do 23 Batalhão de Caçadores, a correr pela Pessoa Anta e dobrar, ao lado da Alfândega, para seguir em reta descansada até a Igreja de São Pedro.

Alfandega: inaugurado em 15 de julho de 1891, o edifício projetado por Tobias Lauriano Figueira de Melo e Ricardo Lange. Hoje, Caixa Cultural.

A primeira “casa de recursos” descobri-a do bonde, em parada vizinha à Alfândega, encompridando a vista, alongada pela curiosidade e a doce concupiscência adolescentes, a ver se as meninas se mostravam aos passantes, como ouvira dizer, faziam por hábito e ponto… Em meio a supostas exibições levantava-se belo prédio de época, ainda de pé, na rua Pessoa Anta, carregado de pecados veniais e loucas descobertas entre putinhas em flor. A luz vermelha, marca de fé da sedução dos prostíbulos, brilhava anunciando a função iniciada nas beiradas da noite.

Para os da minha idade, ardentes de desejo e difusas intenções tivemos ali a nossa primeira “universidade”…

 

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