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Admirável mundo novo. Por Angela Barros Leal

Somente depois que o quarto carro ultrapassou o dele, buzinando forte, assim como tinham feito os três anteriores, é que ele suspeitou de algo errado. Apesar de dirigir devagar, atento aos dois filhos pequenos, sentados nas cadeirinhas no banco traseiro, sabia que não estava retardando o trânsito a caminho da praia.

Parece que todo mundo está muito apressado hoje – comentara com a mulher, sentada ao lado dele, ocupada com o telefone celular, mais uma vez cega e surda a suas inúteis tentativas de conversa.

Quando o quarto carro emparelhou com o deles, baixou o vidro da janela e sinalizou para que ele baixasse também, é que ouviu o que jamais esperava ouvir: Seu carro está pegando fogo. Não havia indicação no painel de nada errado, porém nunca se sabe. Ele agradeceu, virou a direção para o acostamento de terra e estacionou. A esposa e os filhos continuaram do lado de dentro, enquanto ele descia para conferir a inquietante informação.

Ao brilho do sol de quase praia, viu uma chama branca, de extensão considerável, sob o carro. Ele sabia que o tanque de gasolina estava com menos da metade da capacidade, depois da longa viagem, mas havia o risco de um desastre maior. Correu até à janela do passageiro e apressou a mulher para descer com um dos meninos, enquanto ele desatava o outro da cadeirinha.

O menorzinho já começava a chorar, com a pressa do pai, intuindo abandono ou repreensão. Ficaram os três à sombra de um cajueiro, enquanto ele extraia, às pressas, o extintor de incêndio do veículo do local de onde nunca havia saído.

O gás do extintor de pouco serviu para controlar o incêndio, que tomava proporções maiores. Outros veículos começaram a parar, mantendo certa distância. Nunca se sabe o que pode acontecer, em um incêndio onde há material inflamável envolvido. Os motoristas desciam, entregavam a ele os extintores de seus próprios carros, e corriam de volta para lugar seguro – de onde passavam a gravar, em seus celulares, o avanço do fogo.

Ele se viu sozinho, recebendo os pequenos extintores das mãos de um e de outro motorista – 12, no total –, voltando com eles à sua batalha contra as chamas, sem ganhar uma única companhia solidária, a repartir com ele a árdua missão.

E olhou, à sua volta, o paredão de pessoas em distância segura, com as lentes dos celulares direcionados a ele, à família dele, encolhida embaixo do cajueiro, e ao carro em chamas, estalando e se contorcendo como uma fogueira junina.

Alguém chamara os bombeiros. Cidade de praia, desabituada a incêndios, sabe como é: demoravam a chegar. Restava ter paciência e aceitar o infortúnio. Sem camisa, a pele ardendo pelo sol e pelo calor das chamas, impregnado de fumaça, uniu-se à família para acompanhar a cena de destruição.

As crianças choramingavam, cansadas e temerosas. A esposa gravava as imagens do incêndio. Vai que serviriam para alguma coisa, até porque o carro nem era deles, tinha sido emprestado pelo pai dele para o passeio.

O que mais o impressionou, ele me disse depois, foi a ausência de mais um par de braços junto com os extintores. O equipamento de segurança era entregue, é certo, porém sem a correspondente contribuição humana, e ele tinha começado a se sentir como um ator mambembe, um super-herói de terceiro mundo, a flacidez da barriga e as tatuagens desbotadas à mostra, atuando para dezenas de câmeras que iriam viralizar a sua imagem, ganhar clics e likes e espaço nas redes sociais e na mídia.

Racionalmente, entendia o aspecto do cuidado pessoal de cada um dos operadores de câmera. Ninguém quer estar próximo de uma possível explosão. Por outro lado, sentira-se tão sozinho como nunca se sentira antes, na luta cega para salvar o carro do pai.

Quando os bombeiros chegaram, encontraram a carcaça enegrecida do veículo, qual uma ossada remanescente de batalhas urbanas, um caso óbvio de perda total. Ainda havia curiosos com suas câmeras, registrando o quase inútil jato d´água, saído das mangueiras de borracha, que serviu mais para banhar e refrescar as crianças, já esquecidas do drama.

Conseguiram uma carona de volta até à casa do pai, que ofereceu o ombro ao filho: Não se culpe – ele disse. Aconteceu com você, mas podia ter sido eu dirigindo o carro. As lágrimas que pingaram na camisa do pai foram causadas não só pelo consolo paterno, como me disse, mas pela frustração do abandono.

Enquanto os meninos o puxavam pelo braço, mostrando no celular que o vídeo deles no incêndio estava “bombando”, ele sentiu na pele o quanto precisava se ajustar a um universo de auxílio e de amigos virtuais, nesse admirável mundo novo.

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