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Um mundo a aprender. Por Angela Barros Leal

De repente, não mais que de repente, como recitou Vinicius de Moraes, descubro que existe no nosso planeta Terra um lugar chamado Calmúquia. Ocupa uma área de razoável tamanho, em termos de Europa, sendo habitada por quase 300 mil cidadãos calmucos. Apesar de inserida no guloso corpanzil da Rússia, a Calmúquia traz o status de República, tem como esporte mais popular o xadrez, e como religião dominante o budismo.

A República da Calmúquia dispõe de uma bandeira, naturalmente. Em um fundo amarelo, destaca-se diminuto círculo azul, ao centro do qual brota uma alva flor de lótus, com cinco pétalas superiores e quatro inferiores, que deve ser tão fácil de desenhar pelos pequenos calmucos, em suas tarefas de escola.

Pois existem escolas e crianças na Calmúquia, aprendendo a História de como descendem diretamente dos mongóis, estudando a Geografia do exílio autoritário e da subsequente dispersão pelos países vizinhos, analisando, no tabuleiro de mapas, os movimentos em xadrez das correntes humanas que permitiram o retorno à sua terra, mergulhados na Ciência de preservar hábitos e costumes milenares.

Vivem eles lá, os quase 300 mil calmucos, sujeitos a invernos rigorosos que devem ser aproveitados para recolhimento e oração nos templos tibetanos, nesse que é o único lugar no Leste europeu onde o budismo impera, e onde camelos transitam pelas ruas. Nos invernos, caminham os calmucos em suas calçadas, sustentando o peso de suas botas impermeáveis.

Respiram o ar gelado, embrulhados em casacões escuros silenciando as cores do vestuário típico, o rosto protegido pelos cachecóis. Quando se encontram, conversam produzindo nuvens de vapores no ar, dentes e palavras tinindo de frio. Quando se deslocam para maiores distâncias, assim como fizeram seus antepassados mongóis, montados nos cavalos, abrem espaço na neve com as rodas de seus carros, buzinando para ultrapassar o pisar vagaroso dos ditos camelos.

Acredito que as crianças calmucas, ao fim de mais um curto dia invernal, espremam o rosto de olhos amendoados pelo lado de dentro do vidro das janelas, apreciando as luzes acesas das casas vizinhas, rosadas como um vilarejo em chamas. Mães e crianças trazem no código genético um certo pavor de incursões guerreiras quando a noite cai. Talvez entrevejam o luzir de tochas nos faróis dos carros, e na lataria deles o brilho remoto de instrumentos cortantes em ferro e aço.
Nos verões, devem os calmucos tirar proveito dos parques urbanos, ou dos campos verdes que rodeiam as cidades. É bem provável que estendam mantas nos gramados e deitem sobre elas, olhos postos no céu, usufruindo do breve período em que a temperatura persiste amena, no lado positivo dos termômetros.

Imagino que existam mosquitos nos verões calmuques, e que as mães espalhem protetor solar e repelente no corpo inquieto dos filhos. E enquanto os rapazes e moças permanecem fora de suas casas, esticando ainda mais os dias, os adultos olham seus relógios de pulso, como nós fazemos – nós, que ainda usamos relógio de pulso –, abotoem os paletós e se despeçam com aperto de mãos, no encerramento de reuniões.

Nunca na minha vida encontrei com um calmuco. Acredito que nunca irei encontrar. E uso o nunca como termo exato, diante da possibilidade inexistente de que eu, algum dia, resolva viajar para a Calmúquia. Ou de que algum morador de lá venha a se materializar na desconhecida cidade de Fortaleza, estado do Ceará, onde buzinamos para ultrapassar carroças puxadas por burros ou cavalos.

A própria existência dos calmucos me veio como uma revelação. Uma dessas descobertas que me fazem sentir um aperto de remorso, no topo da cabeça, pela vastidão da minha ignorância quanto à presença real de 300 mil criaturas, das quais eu não dava a menor notícia de ontem para hoje, e que se incorporaram ao meu universo justificando ainda mais os 8 bilhões de pessoas que somos.

Agora, sei que a Calmúquia está 6h à nossa frente. E que os calmuques estão ocupados em levar a vida deles, como nós estamos levando a nossa, sendo tão pouco o que nos diferencia: não os mongóis na nossa raiz, mas os indígenas, os africanos, os reinóis portugueses, os franceses, os espanhóis, deixando seu DNA de batalhas, de derrotas e conquistas, na nossa memória molecular.

Interessante, esse planeta Terra, cheio de surpresas. Um mundo de gente igualzinha a nós. Muita coisa a aprender nesse pequeno planeta chamado Lar.

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