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Tipografias, tipógrafos e falsas raridades; Por Paulo Elpídio Menezes Neto

Das artes da tipografia e de como cometer gatos e gralhas em composição tipográfica.

Sou dos poucos remanescentes da tipografia, na trilha sedutora aberta por Gutenberg com os seus tipos móveis. Quando menino, ganhei de meu pai uma caixa de tipos e um “componedor”. Depois, as escovas de provas e uma impressora manual.

Compunha os  textos sob a minha guarda com os tipos móveis, sem intermediários, e usava o papel para sobre ele imprimir as “manchas” ou texto. E o fazia como se fosse um jornal de página única… Os “colporteurs” franceses pregavam essas páginas soltas às paredes, as distribuíam pelas ruas ou as liam em voz alta pelas feiras. Eram as redes sociais da época, o prenúncio da mídia na qual começaria a correr as “fake news” prontamente apagadas pelo viés da verdade que anima o governo das gentes. Anúncios, proclamações, convocações, notícias da Coroa e até queixas e reclamações circulavam nessas formas primitivas de comunicação.

Até conhecer melhor a linotipo, novidade que a muitos parecia ameaçar,  à primeira vista, a tecnologia insuperável, dos tipos móveis de Gutenberg, com os lampejos estéticos de Bodoni e  Garamond, fazia as minhas composições a mão, letrinha por letrinha… Os tipos móveis eram alemães de Mainz; as linotipos, nas quais se realizava a materialização das palavras em blocos de chumbo — Linothype — eram americanas…

As primeiras impressoras, certamente, alemãs. Conheci a minha primeira Heidelberg plana pelas mãos de Anselmo Frazão, na Imprensa Universitária da UFC, em um velho e encantador reduto de máquinas arcaicas, aliciadas pelo reitor  Antônio Martins Filho em velhas tipografias do Piauí.

Construído o texto tipográfico, a prova era inevitável como passo mais impositivo a dar para a correção dos “gatos” e das “gralhas” salvos pela incontinência dis revisores… Não houve tipógrafo ou linotipista, muito menos os digitadores da modernidade virtual, que não os criassem nesses tropeços inevitáveis, urgidos pela pressa em tornar a palavra consistente em tipos de estanho e em linhas de chumbo — ou em arquivos guardados nas “núvens”.

“Gatos” são as trocas  de tipos ou letras; “gralhas”, quando os tipos ficam de cabeça para baixo ou fora do formato do texto em construção no “componedor”.

Monteiro Lobato queixava-se dos “gatos” que, após a impressão do texto, ficavam a pôr a língua para o leitor. As “gralhas”, nas edições antigas, valorizavam o livro e, entre colecionadores, antiquários e alfarrabistas, tornavam-nos raros, peças de colecionadores, em volume e continente saídos das mãos dos escribas ou dos tipógrafos, artesãos remidos da apropriação das ideias — em papel.

Entre editores permissivos, as raridades eram produto de erro intencional. John Dunning, misto de advogado com escritório na Califórnia, e romancista “polar”, autor de histórias policiais, escreveu um livro, “Impressões e Provas”, cujo personagem principal era justamente um falsificador ardiloso, editor e livreiro em São Francisco.

Pois esse fabricante de raridades produziu, com comedimento e asseio,  gatos e gralhas, forjou erros intencionais, pôs as letras de cabeça-para-baixo, cometeu sorrateiramente erros de composição, datas trocadas, número de páginas fora da sequência.

Produzido o indesejável nos experimentos das artes gráficas nascentes,  uma certa quantidade de exemplares era separado, antes do toque criativo final. Era deixá-la a envelhecer ao sol. Cuidava  por bem amarelecer as páginas, sem exageros, com apuro de falsificador aplicado; por fim, era acrescentado um “ex-libris” à folha de rosto para indicar o antigo proprietário imaginário e exibir o seu cuidado ou os descuidos de leitor preguiçoso. Usava de todas as artimanhas de uma fraude distinta, para levar qualquer colecionador abonado de vontade e de grana, ao orgasmo de “connoisseur”ludibriado.

Estava, assim, com esses cuidados de artesão honesto, mais um livro raro pronto. Pelo menos, 20 exemplares eram guardados longe da vista da freguesia carecida de novidades, expostos comedidamente, para aguçar o desejo dos colecionadores.

No romance, se bem me lembro, ocorria um assassinato. Um colecionador, velho frequentador do lugar, tirou a vida do editor-livreiro por justa causa: descobriu que fora  enganado. Mas não o fez pelo dinheiro, porém pelo prestígio perdido de colecionador por muitos invejado. Neste ramo, a última coisa a perder é a credibilidade.

Os falsários não condescendem com a fraude dos concorrentes… É uma questão de foro íntimo, de dignidade, ora vejam.

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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