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O vento e o tempo. Por Angela Barros Leal

Foto: Divulgação

Era o vento que carregava tudo, e era também o vento o culpado de tudo. Era o vento, sim, vindo das bandas do Farol do Mucuripe, trazendo o cheiro do mar aberto, dos cabelos de alga das sereias, do sal prateado na borda das ondas, era o vento abençoado que lavava o ar, que purificava o hálito dos dias.

Ao mesmo tempo, era aquele o vento que, ao penetrar na cidade, ao percorrer suas ruas estreitas, traçadas em xadrez, ao despentear as árvores de tão pouco verdor, zunindo em torno das bocas-de-jacaré no alto dos telhados, soprando sobre a fachada das casas, sobre as calçadas, assoviando nas aberturas das bocas- de-lobo das ruas empedradas, carregava consigo todas as doenças do mundo.

Ou pelo menos era assim que se acreditava, naqueles tempos.

Daí as construções urbanas da capital empurrarem para o lado Oeste, década após década, ano após ano, obedecendo a uma linha quase reta, tudo o que pudesse ser danoso à saúde dos cidadãos.

Lá estavam a Casa da Misericórdia, com frente voltada ao nascer do sol, na qual o vento batia depois de filtrado pelos galhos da praça que seria o Passeio Público; o prédio da Cadeia, confinando os encarcerados e seus sofrimentos físicos; o cemitério São Casimiro, recebendo os corpos que não mais teriam seu derradeiro pouso no piso das igrejas; o lazareto da Lagoa Funda, depósito de semivivos e semimortos pela cólera, pelas febres, pela bexiga.

A ideia do contágio, da transmissão de doenças de pessoa a pessoa, ou a propagação de enfermidades de insetos e animais para pessoas, não era clara. Responsabilizavam-se os miasmas; as exalações invisíveis; os imperceptíveis vapores emanados da decomposição de material orgânico; a podridão decorrente da natureza, da fragilidade do solo, da própria carne humana, sendo disseminados pelo vento –, aquele mesmo vento, que entrava novinho em folha na cidade da Fortaleza.

A fumaça da queima do lixo subia alto, dos quintais e calçadas das casas daqueles que davam às suas sobras o destino do fogo. A maior parte dos habitantes preferia mesmo jogar os dejetos nas ruas, esperando que as chuvas ocasionais os levassem para o ventre guloso do mar, e que o vento fizesse o serviço de continuar soprando.

As doenças proliferavam e o cemitério São Casimiro enchia até a boca as suas covas. Em pouco tempo um novo cemitério foi construído, dedicado a São João Batista. Construção rápida: uma capela, um muro em volta do terreno, e que os mortos chegassem – muitos deles despejados da morada anterior.

São Casimiro quedou-se abandonado, e o tempo e o vento passaram livres sobre o que restou de seus antigos hóspedes. Até ser decidido, por imposições do crescimento urbano, e pela rubrica das autoridades, que a região receberia o edifício da Estação Central da Estrada de Ferro de Baturité. Conduziria igualmente malas e males, entre a capital e o interior, mas seria uma solução para o desenvolvimento.

Assim foi erguida a Estação, 15 metros acima do nível do mar, em estilo classificado como dórico romano pelo escritor Antônio Bezerra, na sua Descrição da cidade de Fortaleza, em idos de 1895. Ocupava uma área superior a 2.000 m2, sendo dotada de um prédio para a administração, um vestíbulo, salas e salões de primeira e segunda classe, uma sala para armazenar as bagagens, uma agência para os correios e outra para o essencial telégrafo, e quatro grandes armazéns para depósito das importações e exportações.

No que foi aproveitado dela, e de seus grandiosos galpões, se encontra hoje o Complexo Cultural Estação das Artes. Lá dentro, apreciam-se os trabalhos dos artistas e caminha-se, devagar, sobre o chão onde estão inscritos os passos apressados de pretéritos passageiros, preocupados com seus chapéus, suas bengalas, suas arcas de viagem, com os bilhetes da Fortaleza para os tantos pontos de partida e chegada. Caminha-se em reverência sobre o pó dos ossos daqueles que ocuparam o cemitério de São Casimiro, fantasmas do vento e do tempo. E se caminhará, no futuro, sobre o espaço que hoje abriga a Arte, pois o tempo é o senhor de tudo.

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