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Maior programa ‘tarifa zero’ de ônibus no Brasil completa seis meses rodando

Família embarca de volta para casa após compras no Centro de Caucaia

Equipe Focus
focus@focus.jor.br

João agora cata latinhas em mais bairros e leva para venda em localidade distante. Flaviane gosta de pedalar, mas arrisca-se menos entre os carros ao deixar e buscar o filho de seis anos na escola. Marcelo, sem dinheiro, procura emprego, já Edilania caminhava 20 minutos a pé com os três filhos até as aulas. Entre deixar e buscar, portanto, caminhava 1h20 “na chuva e no sol”. Eduardo vai mais à praia com a namorada. João, Flaviane, Marcelo, Edilania e Eduardo não se conhecem, mas compartilham da mesma linha de ônibus em Caucaia, município onde a tarifa é gratuita há seis meses.

Está claro no Artigo 6º da Constituição do Brasil: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. 

Na segunda cidade mais populosa do Ceará, e a maior do Brasil a implantar tarifa zero, a economia de R$ 3,40 dobrado entre um ir e vir tem alterado a dinâmica na cidade. Em plena crise inflacionária por que passa o País, com preços da cesta básica e combustíveis em alta e faltando dinheiro para o essencial, como alimentação adequada, a gratuidade em tempos de crise sai da compensação financeira para a psicológica: o alívio de economizar o pouco que tem para investir dentro de casa. 

A Prefeitura explica como chegou à receita que subsidia a tarifa atual de R$ 1,40 e anuncia próximos passos. Apesar do êxito atual do programa “Bora de Graça”, o transporte urbano tem outros desafios, pois a novidade ainda convive com um velho problema: a ausência de terminal de passageiros.

“Bora de graça”

João Paulo é catador de latinhas. Com a tarifa zero, além de dinheiro para a sobrevivência, economiza horas de caminhada até o ponto de venda

Em setembro de 2021, quando a Prefeitura de Caucaia deu início ao programa de tarifa zero, subsidiando a mais o R$ 3,40 que saía do bolso do usuário, a novidade trouxe para muitos passageiros um misto de esperança com descrença (“vai funcionar?”), e alívio com angústia (“será permanente?”).

A questão tem hoje refinamento, dessa vez por quem mora em outras grandes cidades: ‘se é possível, por que os outros municípios ainda não fizeram?’. O 2º município mais populoso do Estado (370 mil habitantes) não era o primeiro a implantar a ideia (Eusébio, também na Região Metropolitana de Fortaleza, iniciou em 2011, mas sem abranger todo o território da ciade) mas se tornava ali o maior do Brasil a implementá-la, com todos os dilemas de uma cidade grande.

Em seis meses do programa “Bora de Graça”, o volume mensal de passageiros em Caucaia mais que triplicou –  de 509 mil em agosto de 2021 para 1,8 milhão em fevereiro de 2022. A reportagem percorreu por cinco horas, divididas em dois dias, diferentes rotas do transporte urbano para ouvir a população (confira vídeo).

“Bora, pessoal! Entra que é de graça!”, brinca o motorista na expectativa para seguir viagem. Fará por todo o dia uma rota com duração de 50 minutos entre o Centro e a Nova Metrópole. Com o tempo se formando para chuva, os passageiros se apressam para subir, especialmente onde não tem parada de ônibus coberta. 

Com uma sacola preta na mão e chinelas gastas de quem anda muito a pé, o catador de latinhas João Paulo entra e toma assento. Saiu de Capuã para vender o material reciclável no bairro Nova Metrópole, distante 9 km. “Se eu fosse pagar passagem, o que ganho com as latinhas não dava pra nada. Agora ficou muito bom porque, como eu entrego mais cedo, dá pra catar mais”. Por não ter que pagar  R$ 3,40, valor da antiga tarifa, o andarilho nunca andou tanto de ônibus quanto agora e também economiza 18 km de caminhada entre ir e voltar. Logo que entra no veículo já procura uma janela para sentir o vento no rosto e ver ligeiramente a cidade.

Quando viu a economia que passou a ter com transporte, a estudante Maria Eduarda se perguntou ‘porque não fizeram antes’. Acredita que teria aproveitado melhor o tempo para estudar, já que a meia hora a pé se transformou em oito minutos no coletivo, mas tenta não chorar a ‘tarifa derramada’. “Só tenho a dizer que está bom, só espero que não acabe, porque a gente fica preocupado que tudo que é bom dura pouco”, diz a aluna de escola profissionalizante às margens da CE 085.

Outro estudante, Eduardo Noronha, aproveita que “é 0800” para ir mais à casa da namorada e levá-la à praia. “Estamos convivendo mais agora”, comemora. Enquanto isso, Marcelo de Sousa acaba de voltar da sede do Sistema Nacional de Emprego (SINE), onde foi deixar cadastro para conseguir uma ocupação. “Desempregado, com filho pequeno e sem dinheiro, se não fosse a tarifa zero eu não conseguiria vir”.

Desconfiado, o eletricista Juvenal Magalhães entra na conversa para perguntar “por quanto tempo os empresários vão permitir”. Teme pelo fim do programa, porque já tirou do orçamento doméstico o custo com passagens e não vê como caberia novamente.

Antes, foi a prefeitura quem fez o caminho inverso, ao incorporar em seu orçamento, além do subsídio, o custo tarifário.

Vitor Valim é prefeito de Caucaia desde 1º de janeiro de 2021

“Não tem milagre, tem responsabilidade fiscal”, diz prefeito
Vítor Valim passou a receber ligações nos últimos meses dos gestores de outras cidades do Brasil, como Macaé (RJ), Luziânia (GO) e até Belo Horizonte (MG). Querem saber do prefeito de Caucaia qual a “mágica” para transportar diariamente quase 100 mil passageiros com tarifa zero.

Sem entrar na realidade de cada lugar, Valim esclarece que analisando as contas públicas e os contratos já firmados é possível custear a passagem, num valor estimado em R$ 25 milhões anuais – nos primeiros seis meses o programa já custou R$ 14 milhões aos cofres públicos.

De onde tirar esta receita? “Se eu fosse resumir em duas coisas seria vontade política e equilíbrio fiscal. Mas para que isso pudesse ser uma política de governo, fomos estudar bastante os números e contratos. Em toda licitação pública tudo é precificado para se chegar ao valor da passagem. Não é da minha cabeça, está tudo no papel, inclusive a margem de lucro para o empresário. Fizemos revisão contratual para que o preço fixo não fosse mais por tarifa de usuário, mas por quilômetro rodado”, explica o gestor.

Transportando cinco ou 50 pessoas  a empresa recebe o mesmo valor. Desse modo, localidades de pouca demanda são atendidas e o empresário da frota de ônibus mantém a margem de lucro contratual. “Já o lucro, para a prefeitura, é o bem-estar social da população”, diz Valim. Antes da gratuidade, um usuário que pegava duas conduções por dia de segunda a sábado gastava, ao fim do mês, aproximadamente R$ 176, o que representa 16% do salário mínimo.

Agora vem grande parte da receita que cobre o Bora de Graça: enxugamento da folha de pagamento de pessoal e, especialmente, na locação de veículos para as atividades de todas as secretarias. “Tudo o que fosse excesso, um gasto desnecessário para nossas atividades, foi retirado, explica Vítor Valim.  “Conseguimos reduzir em 50% os gastos com locação de veículos”, afirma Gutemberg Holanda, procurador-geral do município. Na prática, ele diz que um veículo compacto 1.0 com custo mensal de R$ 2.200 caiu para pouco mais de R$ 1 mil. Foi assim que, entre uns cortes e outros, com apenas nove meses de gestão nasceu o Bora de Graça.

Passageiros se abrigam da chuva enquanto aguardam ônibus na parada

O aumento exponencial do número de usuários reforçou uma demanda antiga que agora se torna mais urgente: terminais de passageiros. Ao passo que a gratuidade repercutiu positivamente, a falta de sinalização e equipamento em alguns locais de parada de ônibus ainda desagrada usuários. De acordo com a Prefeitura Municipal de Caucaia, as obras dos terminais ocorrerão ainda neste ano.

O prefeito Vitor Valim afirma que os veículos serão acompanhados de outras melhorias: mais ar condicionado e conectividade. A cobertura 5G em toda a cidade, prevista para junho deste ano, possibilitará melhores imagens e dados em tempo real de cada coletivo. Outra futura aquisição serão os ônibus turísticos, atendendo especialmente à orla – pelos fortes ventos, Caucaia é destino internacional para esportes como kitesurf e windsurf. Em outubro de 2021 sediou a final do Campeonato Mundial de Kitesurf Freestyle.

Alternativa para o “transporte alternativo”
A implementação do programa Bora de Graça, de tarifa zero no transporte urbano de Caucaia, afetou diretamente os permissionários do chamado transporte complementar ou alternativo: vans, kombis e micro-ônibus. “Para continuar rodando estamos priorizando áreas onde o ônibus gratuito não passa, mas não é fácil”, admite o motorista de van Samuel Quintana.

Por ainda não fazerem parte de contrato de licitação para a concessão de linhas (por vários anos tem funcionado apenas com permissões individuais do poder público municipal), o transporte alternativo não pode entrar no programa. “Não temos nada contra o transporte complementar, pelo contrário, estamos preparando o processo licitatório para o segmento. Nós só não poderíamos incluir no projeto sem que estivesse regularmente licitado, como é o caso da empresa de ônibus Vitória. Estudamos muito todo o projeto para seguir à risca o que está na lei”, afirma Gutemberg Holanda, procurador-geral do município. A licitação deverá ocorrer ainda neste ano.

Central de monitoramento e comando da empresa de ônibus

“O impacto social é imensurável”, avalia dono da frota de ônibus
Negócios são negócios, é importante receber o pagamento para manter o serviço, mas os relatos de orgulho que chegam dos motoristas na sede da
empresa Vitória, licitada para o transporte urbano em Caucaia em contrato vigente desde 2016, mostram o impacto direto e imediato da gratuidade tarifária. “Tinha caso em que a mãe colocava o filho no ônibus e pedia ao nosso motorista para se certificar de que ele desceria na escola, quase uma tutela temporária. Hoje elas já conseguem acompanhar os filhos. Agora são famílias inteiras indo à praia, porque só precisam entrar no ônibus. Deixou de ser um ambiente de viagens solitárias. Há várias histórias que chegam até nós. O impacto social é imensurável”, relata Luís Nogueira, diretor executivo da empresa Vitória. 

Na central de comando da companhia, monitores apontam o georreferenciamento de cada veículo e imagens do circuito interno de segurança. No pátio de manutenção, mecânicos fazem a vistoria para nenhuma rota ficar descoberta em casos de sinistros. “O nosso trabalho não pode parar”, lembra o empresário. Atualmente, são 70 ônibus atuando em todo o território municipal, 20 a mais do que no início do contrato público em 2016, válido por 10 anos.

O aumento da frota não impediu casos de lotação, a depender do horário e da localidade. “É comum que em algumas regiões com demanda diária de 800 passageiros não tenha a mesma disponibilidade de ônibus em outra com 10 mil passagens demandadas, mas tudo isso é compartilhado com a prefeitura, que aumenta a frota conforme seu orçamento”, explica Luís Nogueira.

Desafio é melhorar a mobilidade, alertam especialistas
Os impactos sociais, econômicos e afetivos causados pelo fato de que mais pessoas estão usando os ônibus e circulando pela cidade foram sentidos nos pouco mais de 20 municípios brasileiros que implantaram o programa de tarifa zero. Cada um com suas peculiaridades, vão buscando formas de manter receita. “A iniciativa de Caucaia é importante porque quanto mais universalizado o transporte público maior atenção em termos de conservação e qualidade será dada a ele”, explica Cláudio Oliveira, engenheiro civil e pós-graduando em engenharia de transportes pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Para outro engenheiro, o especialista Lúcio Gregori, a isenção tarifária para os passageiros é possível desde que com planejamento e uma receita que não seja superestimada. ”Quanto maior a cidade, mais ela precisará garantir novas receitas, mas tudo passa por um equilíbrio fiscal”, afirma Gregori, que não é qualquer especialista, mas o engenheiro que criou no Brasil, há 32 anos, o primeiro projeto Tarifa Zero de que se tem conhecimento. Ex-secretário de transportes da prefeitura de São Paulo (1989-1993), idealizou a isenção de tarifa para os passageiros, mas foi barrado pela Câmara Municipal, que alegava não ver orçamento. Lúcio segue vendo o seu projeto se realizar em outras cidades, como Caucaia. Em 2020, o engenheiro lançou livro sobre o tema.

Com tarifa zero, Flaviane Morais evita riscos a pé ou de bicicleta e acompanha o filho de ônibus até a escola

“O programa tarifa zero estimula o uso de ônibus e faz a população perceber melhor a própria cidade, a partir da qualidade dos veículos, das paradas, das ruas, praças, e assim por diante, por isso o gestor precisa estar atento à mobilidade urbana para muito além da democratização do acesso a ônibus”, explica o engenheiro André Macêdo, pesquisador do Laboratório de Pesquisa e Inovação em Cidades da Universidade de Fortaleza (Unifor).

 

Vejam o vídeo-reportagem

 

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