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IN VINO VERITAS. Por Angela Barros Leal

Você sabe como é saboroso – ela engole, e eu digo que não, não sei como é, até porque nunca me interessei por bebidas. Nem sequer socialmente. Mas por que você não bebe? – ela pergunta, espantada com a minha firmeza abstêmia. Por experiência própria, sei que nenhuma outra afirmativa no vasto roteiro dos diálogos humanos é mais favorável a atrair um “por que” do que essa declaração.

Tomo um gole de suco de uva e tento mudar de assunto. A chuva despenca em torrente sobre o telhado que nos abriga. O vento sopra para o lado de dentro, na direção das cadeiras de plástico onde estamos sentadas, zunindo agulhadas finas em nossas pernas. A água da piscina do condomínio de praia perde o azul do cloro e se agita em ondas, no desejo insatisfeito de aproximação do mar.

Como está chovendo esse ano – eu proponho, tentando abrir nova pauta de conversa. Capaz que esse ano seja de inverno bom – complemento à toa, sem a experiência do que seja um bom inverno, que só conheço de leitura sobre safras fartas, engorda dos rebanhos e açudes que sangram.

Ela gira a taça de vinho, protege os ombros com uma toalha de praia e não se deixa enganar. Não quer provar esse chileno? – questiona, erguendo a garrafa na minha direção. Muito bom para um dia assim.

De hábito, tenho três desculpas prontas que utilizo, em sequência aleatória, para responder ao curioso “por que”. A primeira delas é alegar que bebida não combina com a medicação para algum mal (inexistente), do qual eu me encontro (falsamente) sofrendo. É justificativa aceita de imediato, por ser verossímil e passageira.

Em segunda posição está a refinada escusa, de uso restrito a ocasiões em que o consumo geral se intensifica, e os pedidos para encher mais um copo soam como quase ordens: ergo a mão direita, em grave juramento, e digo a quem deseja me servir: Parei!

O “parei” soa bem. Atrai solidariedade. Capitaliza os atributos de alguém determinado a superar as atrações do álcool. Alguém com um passado vexaminoso, capaz de ter exigido intervenções externas, reuniões de grupos anônimos, prática de 12 passos.

A terceira desculpa recai nas enzimas do meu fígado, hostis ao consumo de álcool. Li em algum lugar que tal mazela é real, e deve me atingir um pouco, já que basta um gole, e ossos e tendões derretem nos meus joelhos. Até mesmo o licor, aquele caldo licoroso, aveludado, que vem como um presente dos deuses no coração dos chocolates, produz um adormecimento incômodo nos membros inferiores, um desconforto no estômago. Talvez seja umtipo de intolerância orgânica ao álcool, como existem os intolerantes ao leite, talvez seja um palato imaturo, não procurei saber.

Muitos séculos atrás, visitei a vinícola onde o vinho que a moça à mesa me oferece foi produzido. Visitei por ser turista, e em tal condição fui encaminhada a passear na terra de ninguém que espaça as fileiras de cultivo das uvas, a ouvir a história da roseira guardiã, plantada no início de cada fileira, a entrar nas caves sepulcrais onde o vinho amadurecia no silêncio. Acompanhei a prova de safras, os bochechos, os suspiros, as cusparadas, e dei por finda a experiência. Não ingeri uma gota sequer da bebida.

Ela se anima a me explicar o que perdi. Sei, sei – repito desolada, cabeça baixa. Quem me dera mergulhar em significativas conversas ingerindo taças de vinho branco, vinho tinto, vinho verde, todas as espécies de vinho que ela me descreve agora, como a enóloga amadora que é. Profissional ainda não, pois graduou-se em Contabilidade, algo distante da degustação vinícola. Ela não está tentando me impressionar, diga-se de passagem. Sinto veracidade no posicionamento dela diante do vinho, que encara como saudável. O que de fato pode ser, pelo que testifica a Ciência.

O suco de uva diante da mesa, ao lado do qual ela posicionou a garrafa, me encara com detectável pudor. Quem me dera o milagre de transformá-lo em vinho, contido em belo cálice, a haste delicada girando nas mãos, mantendo a elegância de um connoiseur, aspirar seu conteúdo, saborear de olhos fechados o sumo das uvas vermelhas, verdes, arroxeadas.

Quem me dera, discorrer com experiente familiaridade sobre o terroir, a acidez mais intensa, o blend, o tempo de fermentação, a untuosidade amadeirada que reveste com maciez a mucosa oral, mantendo os olhos úmidos de reverência diante da mais sagrada das bebidas, liberada até no ritual das Igrejas católicas.

Não bebo – agradeço com sobriedade, descartandodesculpas. Essa é a pura verdade, que pode, sim, estar no vinho, como pode também ser encontrada no suco de uva, erguendo com ela um brinde à sequência de feriados na Semana Santa.

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