Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

Cristo, Paixão. Por Angela Barros Leal

No século passado, nos séculos passados, a Sexta-feira Santa era um dia regulado pelo calendário das clepsidras ou ampulhetas de Jerusalém. Desde crianças, nós sabíamos que se tratava de uma data especial, um dia de tristeza igual àquele da morte do avô, da partida da avó, um dia de vestuário escuro, de véu na cabeça, e de cabeçabaixa para o missal aberto na mão.

Não havia aula, o que secretamente nos alegrava um pouco, mas desde o início da semana, chamada Santa, na volta da escola, debruçados sobre nossas tarefas de casa, enquanto resolvíamos os problemas de aritmética ou respondíamos perguntas sobre conhecimentos gerais, já pressentíamos a aproximação do dia sagrado.

Na Sexta-feira Santa, as emissoras de rádio transmitiam apenas músicas clássicas, que nossos pais deixavam ressoar pela casa, transferindo ao ambiente familiar os tons grandiosos de orquestras que nem eles mesmos conheciam. Nada de canções populares, nada de notícias,reportagens, novelas, nada que não remetesse à piedosa reflexão.

Ouvíamos Bach, Mozart, Beethoven e Chopin, sem saberde quem se tratavam, sem entender que tipo de sons eram aqueles, emitidos por instrumentos de beleza celestial. Nós nos aquietávamos em nossas cadeiras, não brigávamos entre nós, e nos ocupávamos em acompanhar, pelo infinito das janelas, as mudanças no formato das nuvens.

As poucas famílias que dispunham de um aparelho de televisão, orgulhosamente entronizado em suas salas, sabiam que era inútil ligá-lo naquele dia, em que até o próprio tempo entrava em suspensão.

Da cozinha vinha o cheiro do bacalhau, ou do peixe, cozinhando em seu banho salgado de temperos, o peixe comprado ao vendedor que passara na véspera pela calçada, carregando aos ombros a vara da qual se alongavam, quase até o chão, de olhos vidrados, os cadáveres recém pescados da cavala, da garoupa, da cioba.

Não percebíamos a semelhança do peixeiro com Jesus Cristo carregando pelas ruas a sua cruz.

Os que de nós desprezavam o peixe, no almoço, e choramingavam por carne, eram repreendidos: Fique em jejum. Faça abstinência. Jesus morreu por você também.

Para nós, era difícil associar essas ideias.

Era o dia da morte de Cristo, nos diziam, e que isso bastasse. Na Igreja, não mais enxergávamos as imagens conhecidas dos santos e santas que costumavam ocupar seus nichos nas paredes. Tinham sido substituídas por vultos recobertos de tecido roxo – talvez seda, quem sabeveludo, e nosso olhar se habituava ao recolhimento deles.

Durante a Missa, entremeada pelo ribombar dos cantos sacros, na hora do sermão o padre detalhava os terríveis sofrimentos d´Aquele que viera ao mundo para nos salvar.

Habituados a pequenas crueldades, e à morte de nossos animais de estimação, ouvíamos atentos a retrospectiva dos últimos dias de Jesus sobre a Terra, narrativa de atrocidade impiedosa, envolvendo uma coroa feita com espinhos a perfurar Sua cabeça, uma cruz pesada, em madeira áspera, impondo a chaga mais dolorosa no Seu ombro, uma sucessão de quedas, os joelhos em carne viva, uma mulher a limpar o sangue e suor do rosto do homem ferido, os pregos martelados sem dó na carne escassa dasmãos e dos pés, a esponja embebida em vinagre, forçada na boca pela ponta de uma lança, o gemido alto antes da morte.

Não era história para crianças. Alguns de nós tapavam os ouvidos, assustados, o que parecia ser bem-visto pelos pais e vizinhos de banco na Igreja, imaginando para esses um futuro no sacerdócio ou em um convento.

Outros de nós, quase sempre os mais velhos, se perguntavam em cochichos de que planta teriam sido colhidos os espinhos; discutiam se a cruz havia sido deitada ao chão, para pregar Jesus sobre ela, e depois erguida pelos centuriões, ou se a cruz já se encontrava implantada no solo pedregoso do monte chamado Gólgota; que tamanho teriam os pregos, e como conseguiriam sustentar um corpo agonizante.

Às vezes, éramos também cruéis, ou pequenos infiéis.

A questão maior era sobre o que seria paixão, palavra que conhecíamos amorosa, das leituras de fotonovelas das tias, e que era igualada a sofrimento naquela semana especial.

O tempo nos ensinaria ambos os significados.

 

Mais notícias