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Altezas e realezas. Por Angela Barros Leal

Não é a primeira vez que travo no trato com uma autoridade. As formas de tratamento para lidar com seres situados acima de nós na pirâmide social – cada vez mais estreita no topo, mais larga em sua base e mais comprimida no meio , continua sendo para mim um dos intrigantes enigmas da vida comunitária.

Por ossos do ofício, preciso saber exatamente como tratar as ditas autoridades. Aliás, e abrindo um par de parênteses, a expressão ‘ossos do ofício’ é uma das que piscam os olhinhos e me seduzem para novos mistérios. Se os ossos do ofício se identificam com o aspecto complexo ou fatigante de um trabalho, o que seriam então a carnes do ofício?

As benesses de receber em mãos um cafezinho feito e trazido por outrem? As apressadas viagens de trabalho? Um cartãozinho de visita com nome e cargo impressos em baixo relevo? Uma vaga na sombra, no estacionamento geral? Ou simplesmente um salário mais gordo, a ser saboreado no final do mês? Bom. Um dos meus ossos do ofício é ter que tratar corretamente as pessoas, dentro de seu status social, já que, tantas vezes, um mero senhor/senhora não parece ser suficiente.

Não conheço os idiomas falados no mundo para poder afirmar que a língua portuguesa seja das que mais diferenciam as pessoas. Suspeito, porém, que se configure como uma delas, concorrendo de perto com a divisãolinguística de classe existente em países de regime monárquico, ou em alguns países orientais, onde há uma linguagem diferenciada para as autoridades.

É só abrir um livro de gramática, ou recordar o tempo de escola, para comprovar a quanto chegam nossos pronomes de tratamento. O Papa, por exemplo, único no mundo, com quem estou certa de que jamais irei entabular um mínimo diálogo, com Ele não me preocupo. Vossa Santidade monopoliza posto exclusivo em sua denominação, aqui na Terra como no Céu.

Com os cardeais também não costumo manter contato. Caso venha a acontecer, sei que, pela possibilidade de algum dia ascenderem ao trono papal, irão demandar o tratamento de Vossa Eminência. Para não me distanciar do mundo espiritual, não é impossível que um dia eu chegue a dialogar com um bispo ou arcebispo, Deverei chamá-losde Vossa Excelentíssima Reverendíssima, o puro exemplo do superlativo absoluto sintético – sim, essa categoria ainda persiste!

Descendo na escala das batinas, posso usar Vossa Reverência ou Vossa Reverendíssima, destinado a sacerdotes, a um presbítero, a um cura ou um diácono, palavras que soam como recém-saídas das páginas de Eça.E ao (aqui entre nós…) baixo clero.

Caso a sorte me aproximasse de reis e rainhas,imperadores e imperatrizes, sendo o mundo tão cheio de esquinas como é, o tratamento correto seria Vossa Majestade. Como, provavelmente, logo atrás deles viria a corte de príncipes, princesas, duques e duquesas, eu prestaria minhas honras com o chamamento de Vossas Altezas.

Reitores de Universidades formam um time à parte. Parecem ser um tanto mais acessíveis, hoje em dia, muito embora o tratamento o contradiga: quem mais possui o direito de ser tratado por Vossa Magnificência, que não suas magníficas cabeças?

Os políticos, ah, os políticos nossos de cada dia! Nossos representantes, supostamente criados à nossa imagem e semelhança, como se distanciam de nós quando precisamos utilizar um Vossa Excelência para o trato com um presidente, um ministro, um senador, um deputado, um prefeito, até mesmo com um embaixador, que nos representa lá fora com pompa e privilégios que nós, seus representados, jamais teremos.

Juízes, promotores, delegados, são encobertos igualmente pelo manto iluminado do Vossa Excelência, com um ‘meritíssimo’ salpicado aqui e ali, estendendo-se aos prefeitos, porém não aos vereadores, ora vejam só.

Descendo a pirâmide, mais perto do dia a dia, vou me deparar com o Vossa Senhoria, destinado a oficiais, a funcionários graduados, aos negócios comerciais. E aos vereadores, que aspiram a Excelência dos prefeitos.Abaixo deles, estamos nós, eu e você, tratados por senhor ou senhora devido aos nossos cabelos brancos, ao paletó que vestimos, à bolsa na dobra do cotovelo que carregamos, ao diploma na parede que exibimos.

Chego assim ao pé da pirâmide, à informalidade usual do você, ao cumprimento coloquial, à mão no ombro, à conversa sem cerimônias. Isso para não deixar de lado o tu, despido de adereços e acessórios, o tu simples, de cara lavada, o tu de havaianas gastas e de bermudão, com o qual compomos a massa da população, e com quem, por fim, me sinto em casa nas questões de tratamento.

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