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A radicalização politica, os impasses da governabilidade e a idade da deseleição

Por Paulo Elpídio de Menezes Neto*
Ensaio convidado

“A modalidade mais evidente e manifesta das novas formas de governo é de ordem eleitoral. As eleições contemporâneas são, me.nos de escolha de orientação, do que de julgamento sobre o passado. O sentido da eleição mudou, ao mesmo tempo, de natureza. Não se trata mais de selecionar candidatos, porém, de proceder a eliminações. Vivemos, assim, uma democracia de sanções”. Pierre Rosanvallon – “La contre-démocratie: la politique à l´age de la défiance”, Essais, Éditions du Seuil, Paris, 2006, p. 175

O que está, de fato, acontecendo  no Brasil? Em que medida fatores externos recentes produziram os efeitos desorganizadores que não conseguimos estancar nestes anos fatídicos de mais de uma década perdida, de frustrações acumuladas? A que ponto chegamos, como país  e nação, na construção de um projeto nacional, cujos propósitos não configuraram, até hoje, intenções claras e objetivas de estratégias governamentais definidas?

Defrontamo-nos, ao longo dos últimos trinta anos, após a recuperação das nossas “franquias constitucionais” — em 1945 e em 1985 —, com  os mesmos  problemas acumulados em 135 anos, no correr das nossas variações republicanas.

Da economia dependente, marcada pela monocultura de herança colonial, chegamos   à modernidade dos desafios do capitalismo industrial, sem nos termos afirmado, entretanto, politicamente, mas seduzidos pelas ideologias que nos apequenam como povo, sociedade e nação.

Convivemos com impasses não resolvidos, tolerados e cultivados, e nos habituamos à saída conveniente das soluções transversais, jeitosas e provisórias. As crises, no Brasil, não se aprofundam, perduram na superfície de problemas passageiros, à sombra dos caprichos do destino e dos interesses comissionados.

Nada nesse conjunto de graves perplexidades é para já. Deus é brasileiro e a esperança, o nosso arrimo de espera, paciente e crédula. Nas reflexões do Príncipe dom João, o Clemente, prevalecia como postulados de governo e de Estado uma tolerada ambiguidade, como se os problemas e as questões que diziam respeito à energia da autoridade do monarca se resolvessem espontaneamente, sponte sua.

A fuga desabalada da Corte para o Brasil, sob encalço das tropas de Junot e a aceitação tácita das decisões das assembleias do reino para a recolonização do Brasil e o negócio da compra da nossa Independência expõem fragilidades das quais até hoje não nos livramos.

Tais  conjecturas despertaram, neste coletor persistente de ambiguidades em que me transformei, algumas habilidades perdidas pelo esquecimento da prática das  artes do governo. Tornamo-nos, todos, com o passar do tempo, indulgentes e tolerantes – clementes — com as nossas fraquezas e com a mobilidade de caráter que nos permitem tantas e tamanhas concessões.

Tomei, sem cerimônias, fatos e circunstâncias para a construção de cenários imaginários do quadro político brasileiro, e, para tanto, vali-me da observação da radicalização ideológica pronunciada que tomou conta do país e aprofundou-se em dois governos, opostos em dilacerados confrontos verbais entre o que alguns observadores chamam de “esquerda” e “direita”.

A ruptura do equilíbrio de forças, suporte do ciclo de governos militares de 64, ao final de 25 anos, não ocorreu por golpe ou ação militar. Deu-se, ao contrário, no decurso de serena normalidade, a não ser pelas palavras acerbas de grupos radicais isolados, altivos mas carecidos de tropas ou da vontade de guerrear, o desdobramento de um processo ordenado de distensão, cuja exaustão mostrava-se evidente.

A fratura aberta, de consistência ideológica relativa, expunha o antagonismo crescente entre grupos dominantes, nos partidos e nas alianças que os apoiavam e no próprio governo. Desta exposição nasceram impasses persistentes, feitos contrapontos entre lideranças partidárias, com a natural fragilização da formação das bases aliadas e de alianças dotadas de energias eleitorais necessárias para a preservação dos instrumentos da governabilidade.

A recuperação das franquias constitucionais já constavam, desde o governo Geisel, da pauta de transição para assegurar o processo de reconversão democrática, segundo os moldes de uma “abertura lenta, gradual e segura”. Em torno desses impasses foram montados o cenário e o proscênio da simulação por demais óbvias, construídas neste texto.

A topografia política que nos chama a atenção é dissimulada pelo matorasteiro de governos imaginários, dos gravetos que se espalham à beira da estrada. De governos e governantes que, até hoje, buscam como apresentar-se ao grande e respeitável público. Os torneios que antecipam alguns juízos expendidos nestas linhas são proposições provisórias, como provisórios o são todo e qualquer julgamento que se faça sobre este país, inculto e permissivo. O fulcro da análise levada ao leitor toma como referência os riscos de um processo acentuado de quebra da unidade política do País, presentes nas últimas três décadas, no Brasil.

Nesse percurso, esquerda e direita retomaram velhos paradigmas, reinventaram conceitos e serviram-se da memória histórica para metabolizar seus preconceitos e discriminações, deveras, nunca abandonados.

Para esta simulação, dois cenários foram retidos, como se fossem os contrários de um mesmo e único processo. Tomados como referência, em arriscada tentativa de redução ideológica, prestam-se, ainda assim, como escala e medida de notórios “desvios-padrão”, o intervalo em torno da média aritmética no qual a maior arte dos dados se encontra…

O governo Bolsonaro (2014/18) converteu-se em um impasse, contido epressionado pela esquerda, associada a  algumas alianças de ocasião. Ao contrário de Milei, na Argentina, faltaram-lhe competência e liderança para a formulação de um projeto nacional, e os meios indispensáveis para a consolidação de uma “opinião” influente.

As ideias dispersas de um rosário de mantras e velhos dogmas liberais não assumiram  a força das proposições de governo. Apoiado por partidos e políticos, ditos de “centro”, este experimento liberal cedeu lugar a imposições e interesses e ao constrangimento de chantagens dissimuladas, até mesmo pelos que participavam da sua construção, na retaguarda das lideranças parlamentares.

Em um certo sentido, o governo Bolsonaro tornou-se refém do que afirmou, prometeu e não cumpriu à falta de meios, dos apoios institucionais e de competência política para o seu cumprimento.

Lula ou Bolsonaro, eleitos em 2026 espelhariam possibilidades comuns, de quebra da hegemonia da esquerda ou da direita (seja lá o que esta classificação possa significar no Brasil), conquanto conservados o equilíbrio e o arranjo da atual estrutura do ordenamento eleitoral, assegurados pela Constituição e pelas emendas constitucionais incorporadas — e pelas leis e regramentos baixados pela justiça eleitoral, ao sabor das conveniências ajuizadas pelo Legislativo e o Judiciário.

O cenário de um governo de “esquerda” ou de “direita”, ceteris paribus, é autoexplicativo. A força da esquerda, desenvolvida nas trincheiras da oposição, foi, a seu tempo, mobilizada para as ações concretas do governo do Estado. A competência para a crítica e para o exercício da oposição, o poder demolidor da sua voz, não demonstraria, todavia, a mesma vocação para as lides do governo e para as complexas funções administrativas.

A voz não se fez ação. A ação mostrou-se frustrada pela ideologia, contida e domesticada pelos enunciados mais primitivos das ideias sobre o governo do Estado. A sofisticação dos mecanismos da administração e do planejamento e dos projetos de governo venceram os limites da capacidade de gestão dos governantes e a estrutura antiquada da governabilidade.

Consideradas a expressão e a importância da influência e da capilaridade dos mecanismos eleitorais e da penetração e controle dos meios de comunicação pela esquerda, no governo ou fora dele, inclusive das milícias virtuais sustentadas por aplicativos e redes sociais, é de prever-se que os impasses montados em oposição ao governo Bolsonaro (2018/22) aprofundassem o exercício da sua militância.

Da conjuntura decorrente de um poderoso arsenal midiático, a capacidade de governar ficaria reduzida à paralização ou inibição da ação governamental. O desequilíbrio de forças entre os Poderes do Estado, por sua vez, recobraria instrumentos impositivos e neutralizadores da ação do Executivo, reduzindo o seu papel constitucional e o pacto federativo a instâncias inferiores subordinadas.

Em qualquer um dos cenários construídos, parece incontornável a ameaça do surgimento de novos impasses e do agravamento dos desequilíbrios existentes da governabilidade, bastante fragilizados. As evidências da demonstração desses exercícios denotam, com chocante obviedade, o bloqueio de forças políticas, ideológicas e partidárias que as alianças e as convergências de interesses dificilmente alcançarão.

Este esboço simplificado, apresentado em cenários reduzidos ao essencial das nossas contradições, aponta, apenas, para os impasses que dominam a cultura política brasileira.

*Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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