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A lavadeira e as circunstâncias. Por Angela Barros Leal

Lavadeira. Foto: Divulgação

A lavadeira, que ostentava o nome altivo de Maria Grandeza, vinha toda semana apanhar a roupa usada. Trazia de volta a roupa limpa, engomada e cheirosa, que levara para a casa dela na semana anterior. Acho que as peças menores, as roupas do dia a dia, os jalecos brancos do meu pai, e os uniformes escolares, não seguiam com ela. As fardas e as batas médicas tinham uso diário. E eram muitas as crianças. Provavelmente eram cuidadas pela babá ou pela copeira –, função antiga, hoje extinta.

Havia um quarto chamado “quarto de engomar”, entre a cozinha, a despensa, a sala de visitas e o terraço ladrilhado em vermelho, aos fundos da casa. Não tinha janelas. Em compensação, dispunha de três portas. Bastava abrir duas delas que o vento, ainda voando desimpedido entre as residências da rua, aliviava o calor produzido pelo ferro de engomar.

A tábua de passar roupa mantinha-se armada, sempre pronta para o uso. Ao lado, um roupeiro grande, de vime, recebia as toalhas e os lençóis usados. As prateleiras de um armário fechado guardavam a roupa que tinha sido lavada à mão, com sabão em barra, na pia montada ao ar livre, sombreada por um pé de mamão-macho e pelas folhas mais distantes de um cajueiro encurvado. Não havia máquina de lavar.

Depois de lavada, a roupa era estendida exposta ao sol, presa nos fios de arame que se cruzavam entre a parede lateral da casa e o muro alto que dava para a rua. Quando recolhidas, no final do dia, ou se houvesse qualquer ameaça de chuva, seguiam para o armário no quarto de engomar.

A lavadeira levava para a casa dela as peças de maior porte: lençóis, colchas de cama, toalhas de mesa. O processo era sempre o mesmo. Ela chegava, tomava um gole de café, um copo d’água, e ia com a minha mãe para o quarto de engomar. Um dos lençóis a serem lavados era estendido no chão. Os do enxoval do casal eram bordados com monogramas, mas todos eles eram brancos. Não havia o luxo das cores ou das estampas, menos ainda tempo sobrando, por parte da mãe, para atender preferências estéticas dos filhos. Sobre o lençol depositavam o conteúdo do roupeiro, peça a peça.

Toalha de mesa de linho, uma – dizia a lavadeira, e minha mãe anotava em uma caderneta onde estava escrito RÓL DE ROUPA, com acento e tudo. Toalha pequena, de linho, duas – dizia a lavadeira. E assim seguiam, até esvaziar o roupeiro. As pontas do lençol que servira de base eram atadas na diagonal, de duas em duas, formando uma trouxa macia, de cheiro difuso, sobre a qual se jogavam os filhos pequenos, enquanto as duas mulheres acertavam valores e prazos. Equilibrando sobre a cabeça a pesada trouxa de pano, uma das mãos auxiliando a equilibrar o volume disforme, despedia-se a lavadeira.

Às vezes, minha mãe conseguia o carro da casa, sempre ocupado por meu pai. Alguns de nós seguíamos com ela, na missão de buscar as roupas engomadas. Maria Grandeza morava na rua Costa Barros, na altura da verdadeira fachada do Palácio do Bispo, não avistada dos passantes. Lembro bem que havia um desnível grande entre a calçada e o telhadinho da casa dela, lá embaixo, perto de onde corria o que restava do rio Pajeú. Talvez a roupa fosse lavada no Pajeú, a lavadeira de cócoras, como era praxe no interior.

A roupa que colocávamos no carro, depois de escalarmos o desnível do terreno com o zelo de quem carrega valiosos troféus, vinha em pilhas organizadas, rígidas com o grude caseiro, com a goma que Maria Grandeza preparava, e com a qual umedecia toalhas e lençóis antes de impor sobre eles o poder do ferro a carvão, iluminado pelas brasas.

Vinha reluzente, a roupa, com um cheiro distante de fogueiras, porque a crueldade do fogo tem também o poder de extrair aroma e brilho. Eu perguntava à minha mãe por que tanto trabalho da lavadeira, se tudo aquilo, no dia seguinte, ia estar outra vez sendo usado, enxovalhado, salpicado de comida, amarrotado. De olho no movimento dos outros carros, minha mãe exemplificava com a necessidade repetitiva de se fazer a cama, de se escovar os dentes, dos banhos diários, da lavagem dos pratos, do cumprimento ao sólido pacote do contrato social que subscrevemos ao nascer. É assim que as coisas são – dizia.

É assim que as coisas eram –, digo eu hoje, pensando no sacrifício da lavadeira, enquanto jogo as roupas na máquina de lavar, da qual sairão, quase todas elas, sem necessidade sequer de passar a ferro. “Eu sou eu e minha circunstância”, como enunciou o filósofo espanhol Ortega y Gasset. E me desculpo à minha mãe e à Maria Grandeza – por diferentes razões –, enquanto aperto o botão para dar início a mais um desumano processo de limpeza.

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