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O Pequeno Deus da doçura. Por Angela Barros Leal

Desviamos do caminho para estacionar perto da barraquinha onde era vendido pastel, pão com ovo, caldo de cana. Saímos do fluxo movimentado da esquina. Impossível estacionar, de tão intenso o trânsito. Como agravante, um ônibus imenso estava com problemas na beira da calçada. 

O pastel era o mais fácil. Estava pronto, nem quente nem frio, borrachudo ao toque, como esperado, um verdadeiro pastel de barraquinha de calçada, sem tirar nem por. O caldo de cana era outra história.

Havia uma fila para o caldo de cana. Uma fila razoavelmente longa de pessoas desejosas por se deleitar com o sumo espremido da cana, que o rapazinho responsável extraía como se aquilo nada fosse.

Erguia e puxava com força, com o braço direito, o cabo metálico que fazia funcionar o motor, como faz o piloto de uma lancha com motor de popa. Puxava uma ou duas vezes, se necessário, o cabo que dava o arranque no rolo duplo de metal pronto para espremer as hastes da cana. 

Com as mãos enluvadas, o rapazinho alourado juntava um punhado de hastes verde claras e escuras, trazidas não se sabe de qual das nossas Serras vizinhas, e empurrava o feixe, de uma só vez, para a impiedosa compressão entre os dois rolos metálicos.

Entravam as hastes da cana de um lado para saírem, do outro lado, como restos do que tinham sido. As hastes eram liberadas na forma de uma pasta esmagada, esfacelada, uma massa esbranquiçada que em nada se parecia com o produto original. O rapaz recolhia aquele resto triturado, dobrava ao meio e o reintroduzia entre os rolos, para aproveitar até a derradeira gota do doce sumo.

Que a essa altura jorrava em uma vasilha plástica, com jeito de muito usada, tendo sobre ela uma peneira em condições semelhantes de higiene, para filtrar o que houvesse de mais grosseiro. Fosse uma porção inconveniente do nó de uma das hastes, fosse um fragmento mais resistente da cana, isso lá mesmo ficava.

A fila ia diminuindo aos poucos. O calor forte do dia e o perfume que se erguia daquele ofício chamavam a clientela, sem que o rapaz precisasse anunciar nada além da silenciosa placa aposta sobre sua barraca: CALDO DE CANA GELADO. O gelo era despejado dentro de copos plásticos e algum mais exigente reclamava. Embora duvidosa, não parecia correto macular a pureza do caldo com a água a ser liberada pelas pedras de gelo.

O rapazinho nem escutava, talvez devido ao ruído alto do motor. Tirava as luvas descartáveis, colocava um novo par, e dobrava ao meio mais um feixe de hastes. Na carroceria dos carros estacionados, no pneu estourado do ônibus que emparedava a barraca, na coberta de lona, ao lado do rapaz e em volta dele, uma nuvem permanente de abelhas escuras se movia devagar.

De fato, ao se aproximar minha vez de ser servida, vi que em todo o seu entorno reinava um exército de abelhas de um brilho escuro, peludas, patas e antenas grosseiras, voando pesadamente de um ponto a outro.

Não é abelha, nem é perigosa, ele me explicou, elevando a voz acima do motor, quando chegou a minha vez. É arapuá, um tipo de abelha sem ferrão que gosta de enganchar nos cabelos das pessoas. Mas não morde. Não faz mal nenhum. 

E quando o rapazinho removeu das mãos as luvas descartáveis, e estendeu as palmas das mãos para comprovar o que dizia, vi na ponta de cada um dos dedos dele, qual fossem parte da pele –, vi, sob o plástico fino das luvas, tão insistentes e tão inevitáveis, que ele nem se preocupava mais em despojar-se delas, arapuás bêbadas de tanto doce. 

E pensei que ele ali parado, sob o sol, as mãos estendidas, um halo de arapuás cercando seus cabelos tingidos da cor do mel, parecia um diminuto deus dourado, um encantador de abelhas, trazendo tantas delas cravejadas nos dedos, mortas ou morrendo de tamanha doçura. 

E recebi das mãos dele o copo de caldo de cana, com a reverência de quem recebe uma hóstia consagrada pela Natureza. 

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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