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O direito à propriedade privada e a “nova reintegração de posse” pelo STF. Por Frederico Cortez

Frederico Cortez é advogado, sócio do escritório Cortez & Gonçalves Advogados Associados. Especialista em direito empresarial, direito digital e propriedade industrial. Cofundador da startup MyMarca- Propriedade Industrial & Intelectual. 

Por Frederico Cortez

A Constituição Federal de 1988 tem em seu Norte o pilar do garantismo à proteção da propriedade privada. Trata-se de uma cláusula pétrea, onde não se negocia nenhuma redução no seu alcance protetivo. Essa leitura não abarca qualquer interpretação diversa, do que expressamente consta entabulado no caput do art. 5º e inciso XXII da Carta Magna brasileira. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barro do Supremo Tribunal Federal (STF) diminuiu esse direito constitucional, por sua interpretação subjetiva do preceito aqui em debate.

A questão toda orbita ainda através dos efeitos da pandemia da Covid-19, que atualmente se encontra controlada com mais de 80% da população brasileira vacinada e com zero casos de morte pelo novo coronavírus em grande parte dos estados brasileiros. A decisão do sobrestamento da efetividade de medidas judiciais para fins de cumprimento de ordens de reintegração de posse/despejo já está em sua terceira edição, ao passo que o contexto pandêmico é diverso. Bom lembrar, que tal “direito” não é amoldado de uma incondicionalidade legal, estando vinculado à existência o exercício da função social da propriedade. Ou seja, o bem tem que servir a algum propósito, sendo de moradia ou de produtividade.

Agora, o ministro Luís Roberto Barros faz mais uma “reedição” da medida cautelar ao impor a formação de “comissões de conflitos fundiários pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais”. Para corroborar a continuidade da sua leitura sobre a colidência entre direito à propriedade x reintegração de posse, Barroso aponta números da uma “pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2021, 31% das pessoas estão na rua há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou renda”. O ministro do STF soma ainda ao destacar que “segundo levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS-UFMG), divulgado na mídia em 13.10.2022, pelo menos 38.605 novas pessoas começaram a morar nas ruas em todo o Brasil desde o início da pandemia da COVID-19”. Por fim, a queda da renda média per capita do brasileiro foi recorde no ano passado, chegando ao menor valor nos últimos dez anos.

O tema de fundo aqui apresentado, dista tão somente para os casos de ocupação coletiva, sendo excetuado assim esse tratamento para as reintegrações individuais. De todo caso, de agora em diante os Tribunais estaduais e federais deverão adotar duas medidas, quais sejam: “instalação imediata de comissões de conflitos fundiários pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, que deverão realizar inspeções judiciais no local do litígio e audiências de mediação previamente à execução das desocupações coletivas, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos”; e “observância do devido processo legal para a retomada de medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis, com concessão de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida, e o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos ou adoção de outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família”.

Há que se enaltecer nessa nova compreensão do direito à reintegração de posse com a criação de um ambiente de mediação, com a finalidade de se evitar “conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais ou urbanos, de modo a evitar o uso da força pública no cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo e (r)estabelecer o diálogo entre as partes”. Todavia, esse mesmo “uso da força pública” é garantido pela Constituição Federal de 1988 como via necessária para a manutenção da segurança jurídica e cumprimento das diretrizes de um Estado Democrático de Direito. Modular ou mesmo mitigar o direito à propriedade quando esbulhada exige uma resposta do Estado, posto que ao seu proprietário são exigidos todos os deveres e pagamentos de impostos/taxas sobre o direito real do imóvel.

A nova reinterpretação do instituto da posse pelo STF, em direito de propriedade, não só reduz uma garantia constitucional da propriedade, como também cria novos atores para esse cenário que até então cumpria o seu dever legal positivado de acordo com a CF/88. A coisa toda causa arranhadura na ordem legal constitucional, quando a decisão do ministro Luís Roberto Barroso faculta ainda aos Tribunais estaduais a autorização da participação no processo de reintegração de posse de Comissões de Conflitos Fundiários instituídas no âmbito de outros poderes e órgãos, como o Governo do Estado, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público, a Defensoria Pública etc. Ou seja, um forte impacto na segurança jurídica nacional, uma vez que a depender do entendimento do ente federativo, o Brasil corre o sério risco de ter uma “legislação própria” de reintegração de posse/despejo para cada estado brasileiro.

A certeza que temos aqui são duas, unicamente. A uma que, não mais subsiste o estado pandêmico da Covid-19 a fim de justificar tamanha distorção de um direito constitucional. Em seguida que, o próprio autor da decisão judicial ao mesmo tempo que reconhece a redução do novo coronavírus invade mais ainda a competência constitucional legislativa ao alterar profundamente todo o devido processo legal de proteção da propriedade privada. Infere apontar ainda que, o ministro Luís Roberto Barroso cruza a linha da função do STF acerca do tema em debate quando certifica em sua decisão o pleno conhecimento sobre o projeto de lei que tem a mesma matéria por escopo.

Não é de hoje que observo movimentos judiciais que atropelam e judiam dos ditames constitucionais individuais, ao ponto de já serem considerados tão “normais e comuns” pelas diversas reincidências, cuja força sorrateiramente já se instala em nossos quintais ao som de um silêncio ensurdecedor de instituições que, via de regra constitucional, deveriam se opor.

Até quando?

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