Coletivo. Por Angela Barros Leal

Caso alguém me pedisse para qualificar aquela imensa quantidade de gente enchendo as ruas, juro por Deus que eu ia sentir dificuldade. Lembro bem que na escola estudávamos, para nunca mais esquecer, o singular e o coletivo. Para peixe era cardume. Para pássaro, revoada. Para abelha, enxame. Rebanho identificava o conjunto de vacas, de ovelhas. Estes eram seres que compunham nosso universo de conhecimento, de crianças criadas entre o mar, o céu das serras e o sertão.

Mas havia também o desafiador coletivo de lobo, a tal alcateia, bufando vapor em matas geladas. O curioso agrupamento de camelos, formando a cáfila, a mover com as patas a areia fina dos desertos. A vara de porcos, mergulhando em abismos bíblicos, ou de javalis dilacerando presas. Substantivos coletivos identificando animais com os quais poucos de nós manteríamos proximidade – exceto nas lições de casa, no temido dia das provas, ou em improváveis viagens.

Aprendíamos, ainda, que havia alternativas para designar o coletivo de pessoas, como era o caso daquela imensa quantidade de gente enchendo as ruas, que eu via agora, em passeio de poucos dias por outros ares e outros mares. Povo. Turma. Bando. Horda. Associação. Sociedade. Multidão.

Apesar de oficialmente encerrada a alta temporada turística, no breve intervalo em que o verão ainda não se deixara partir, e o outono ainda não conseguira se impor, o povo continuava a abarrotar as avenidas principais, a escorrer em fluxo compacto para as vias secundárias, a desaguar diante dos Museus e monumentos, a penetrar pelas frestas das grades e portões dos lugares mais icônicos, em ondas incansáveis de pernas e pés e braços e cabeças.

Era correto descrever aquela quantidade de pessoas como um grupo heterogêneo, uma sociedade múltipla, uma turma de estrangeiros a se desentender em suas próprias línguas, uma associação de criaturas desocupadas ocupando terrenos alheios, perturbando a vida diária dos residentes.

(Aliás, na camiseta usada por um desses insatisfeitos moradores li a seguinte frase: “Não vi. Não sei. Não interessa”. Recado mais claro, impossível.)

E lá seguíamos nós, peças encaixadas na multidão itinerante, programados por antecedência para conhecer os mesmos atrativos, oriundos de tão diferentes caminhos, e lá prosseguíamos compondo policromada espuma na onda interminável de cabelos louros, escuros ou brancos, lisos ou encrespados, curtos ou longos, acompanhando com os olhos a bandeirola do guia, o guarda-chuva erguido à frente do bando, pescoços móveis para os lados e para o alto, sem perder tempo em olhar para o chão.

No passado, os nascidos em um dado local estavam fadados a emitir o último suspiro no mesmo dito local, quem sabe até no próprio leito no qual haviam visto a luz. Bem claro se faz o exemplo do filósofo Imanuel Kant, partido aos 80 anos de idade na mesma Königsberg que a ele servira de berço. Hoje, nem pensar.

Essa maré humana da qual, estranhamente, sonhamos participar, ganha o substantivo coletivo de turistas. Ou o de viajantes, como preferem alguns, mais avessos aos roteiros pré-traçados das massas. De um jeito ou de outro, cumprimos com a nossa vocação de pertencer a uma sociedade, a um agrupamento humano, enquanto marchamos em grupo rumo a um inescapável destino, do qual não há passagem de retorno.

“Eu sou vários!”, empolgava-se Nietzsche no processo de reconhecimento. “Há multidões em mim”. E assim seguimos juntos o mesmo plano, do individual ao coletivo, como os visitantes passageiros que sabemos ser neste nosso imenso mundo.

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