Cartas na mesa. Por Angela Barros Leal

Caros leitores, caras leitoras

O motivo da presente missiva é trazer mais uma triste notícia, a se somar a tantas outras de que temos, ultimamente, tomado conhecimento. Nesse momento especial de nossas vidas, no qual cada dia nos traz mais perdas do que ganhos, quando percebemos que a quantidade de medicamentos sobre nossa mesinha de cabeceira supera a de material para leitura, nesse momento em que a curva aritmética ilustra nossa participação em batizados, e a curva geométrica assinala nossa presença em velórios, quando os netos já nos superam em altura e nas instruções de uso desse mundo novo, trago a vocês o laudo que anuncia o fim iminente do gênero epistolar.

A correspondência, como era conhecida, envolvendo papel próprio (o mais leve possível, para baratear os custos do envio por via aérea), pena ou lápis, caneta ou máquina de escrever, que carecia de toda uma parafernália abrangendo envelopes, cola, selos, carimbos e disponibilidade de tempo – a correspondência interpessoal encontra-se em seus derradeiros suspiros.

Sim, queridos leitores. Tal diagnóstico se deve à incansável observação, tanto por parte de leigos quanto pelo olhar de especialistas, que vêm acompanhando o constante definhamento desse modo de comunicação que foi um dia gênero literário de tão longeva tradição. Ainda não perdemos o paciente, verdade seja dita (pois ainda deve nos restar sempre alguma esperança), porém estamos próximos de perdê-lo diante do deprimente quadro que ora se apresenta.

O que nos conduz à dura realidade de nunca mais conseguirmos reunir, em páginas de livro, correspondência como a de Fernando Pessoa com amigos de outros continentes. De Clarice Lispector com suas queridas irmãs. De Lima Barreto com os companheiros de infortúnio. De Eça de Queiroz com o mundo literário.

Nunca mais teremos as cartas informais entre Capistrano de Abreu e o Barão de Studart, debatendo fatos relacionados aos primórdios do que viria a ser o Ceará. Nunca mais a troca de escritos preciosos entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. As cartas modernistas entre Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. A sisuda correspondência entre Hermann Hess e Thomas Mann, as cartas incendiárias trocadas entre Nietzsche e Wagner, entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, entre Freud e seu rebelde discípulo Jung.

(Aliás, quem sabe nunca mais teremos personalidades como Pessoa, Clarice, Eça, Machado, Jung, Tarsila.)

Palavras como epistolário (livro que reúne várias cartas), epistológrafo (o que escreve epístolas) e a própria epistolografia (atividade literária baseada no estudo e no desenvolvimento de cartas), serão sepultadas no mesmo túmulo do saudoso gênero.

Preparemo-mos, portanto, para encarar a aproximação do instante conclusivo, a emissão do atestado de óbito reconhecendo o fim da era das cartas, a serem substituídas por e-mails, mensagens de WhatsApp, de Telegram, de msn, de Instagram, de Twitter (ou de X), e do que mais venha a ser criado pela mente dos superdotados que povoam o planeta.

Não duvido, meus caros, que a literatura venha a incorporar essas recentes formas de comunicação em um modelo literário contemporâneo, já que tudo se modifica e se reconstrói, muito embora não se saiba se um livro intitulado Os e-mails entre fulano e fulana poderia alcançar sucesso nas livrarias.

Até lá, o melhor que faço nessa missiva é colocar as cartas na mesa: depois do fim quase integral do telefone fixo, depois de vermos perder vida independente a máquina fotográfica, o gravador, a calculadora, o calendário de mesa, o relógio de pulso, os jornais, as revistas e os mapas em papel, depois da sobrevida intermitente das salas de cinema e de tantas outras perdas, sofridas nas décadas recentes, o mais saudável para nós, leitores, é aguardarmos em paz o derradeiro suspiro da correspondência escrita.

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